Há livros que desde muito desejávamos ver escritos. Como este, de Luis Nicolau Parés, A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia.
Do que vamos sabendo sobre o tráfico negreiro na Bahia e sobre as suas populações escravas, podemos depreender que, no decorrer do século XVIII, entre um terço e metade dos africanos de Salvador e do Recôncavo Baiano seriam jejes, denominação que englobava fons, guns, hulas, huedás, popôs, evés, aízos, agonlis, mahis, savalus e outros povos de idioma gbe. Apesar disso e da importância que inevitavelmente teriam tido na construção dos valores e costumes baianos, os jejes ficaram à sombra dos estudos iorubanos. Estes foram de tal modo predominantes, que acabaram por empalidecer até mesmo a presença, em todos os planos da vida social baiana, dos ambundos, congos, pendes, quissamas, iacas, angicos, libolos e outros povos de falas bantas de Angola e dos Congos, que não deixaram, durante três séculos, de desembarcar em grandes quantidades na Bahia.
Este livro de Luis Nicolau Parés nos intima a repintar o quadro. Fruto de demoradas leituras, de pesquisas no Maranhão, na Bahia e na República de Benim e de um convívio de muitos anos com as comunidades veneradoras dos voduns, ele desenrola diante de nós, sempre com clareza e algumas vezes com minúcia, uma história que há muito queríamos conhecer – a dos jejes na Bahia –, e a entrelaça, com saber e habilidade, à da própria formação do candomblé. Para Luis Nicolau – e estas são duas das novidades dessa obra –, os cultores dos voduns, que falavam gbe, seriam responsáveis pela organização dos candomblés numa estrutura eclesial ou conventual, e teriam trazido da África o culto sucessivo de várias divindades no mesmo templo, o que não se conhece entre os iorubás no outro lado do Atlântico e tem sido interpretado como uma criação brasileira, resultante das condições sociais determinadas pelo regime escravista, sobretudo no âmbito urbano e em Salvador.
Confrontando e somando as tradições orais e as fontes escritas, Luis Nicolau narra e compara as histórias de dois santuários jejes, ambos surgidos na segunda metade do século XIX, e que se têm por mahis: um em Salvador, o Bogum; o outro em Cachoeira, a Roça de Cima, da qual saiu o Seja Undé. Escava o passado em busca de terreiros mais antigos e se detém, procurando, sempre que possível, mais do que esboçar suas biografias, sobre as mulheres e os homens que conduziram esses centros religiosos e foram transmissores de cultura e agentes de mudança. Desenha retratos inesquecíveis de alguns deles. E com eles caminha até o presente, para nos descrever o panteão dos voduns e os rituais jejes e identificar as mudanças que neles se processaram, ao longo do tempo, no Brasil e na África.
Em A formação do candomblé, o historiador jamais se despede do antropólogo, nem este do historiador. No livro, passa-se de uma das margens para a outra quase imperceptivelmente. Porque, bem pensado, é bem escrito. Bem escrito como deveriam ser todos os livros. Daí que suas páginas sejam lidas não só com interesse, mas também com encantamento.
Forçoso é registrar um pecado da editora: o livro não possui índice remissivo, que me parece indispensável numa obra importante como esta.
Por Alberto da Costa e Silva, historiador e embaixador.
www.editora.unicamp.br
Ver artigo original na Revista de História da Biblioteca Nacional
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