sexta-feira, 30 de abril de 2010

Lançamento de biografia de Querino na Bahia

Manuel Querino entre letras e lutas - Bahia 1851-1923, da autoria de Maria das Graças de Andrade Leal, foi editado pela Annablume/Uneb e será lançado na cidade do Salvador no dia 13 de maio próximo na Biblioteca Pública do Estado da Bahia às 16:30. Este lançamento está integrando as comemorações de aniversário dos 200 anos da Biblioteca. 

Seguem dados fornecidos pela editora Annablume:

 Manuel Querino
Manuel Querino – Entre letras e lutas – Bahia 1851-1923
Maria das Graças de Andrade Amaral
Formato 16X23cm, 484 páginas
ISBN 978-85-391-0026-2


Neste livro, Maria das Graças Leal desenvolve um importante estudo biográfico sobre Manuel Raymundo Querino (1851-1923). A autora apresenta as várias faces deste sujeito singular e plural, ao tecer um enredo que revela a história de sujeitos incógnitos, fazendo ressoar vozes silenciadas pela historiografia tradicional. À medida que a sua trajetória é revelada, a história política e social do trabalho e da arte e a trajetória de outros homens que viveram, criaram, produziram, lutaram, puderam ser retiradas da penumbra. Uma versão da história vista pela ótica do oprimido é construída com cores, movimento, luminosidade, ao valorizar a existência de pessoas reais que enfrentaram dificuldades e conquistaram vitórias reais. Brasileiro afrodescendente, nascido em Santo Amaro da Purificação-Bahia, viveu intensamente acontecimentos significativos da história do Brasil, e da Bahia em particular, que marcaram os anos finais do Império e iniciais da República. Da sua base operária, enveredou pelo mundo da política partidária, na medida em que desenvolvia o talento de artista, diplomando-se em desenho e cursando arquitetura. No Império, militou no trabalhismo, criando a Liga Operária Bahiana e, na República, foi um dos fundadores do Partido Operário, a partir do qual foi conduzido para o cargo de Conselheiro Municipal por duas legislaturas (1891-1892 e 1897-1899). Desligando-se da política partidária, iniciou uma outra militância, ao se dedicar à produção de conhecimento e ao magistério. Pelo trabalho intelectual que produziu, Querino se consolidou na sociedade baiana, garantindo prestígio no meio intelectual e no meio operário.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Campanha Quem é do Axé Diz Que É! - Diga que é filho de Oxalá


A Tarde 15/04/2010

Jaime Sodré
Professor universitário, mestre em História da Arte, doutorando em História Social


O não e o sim têm as suas razões históricas.

Não se trata de uma simples concordância ou uma rejeição ao sabor da vontade pessoal ou coletiva, desprovida de conteúdos significativos, mas das ações de forças poderosas, construtoras dos fatos, como resultado das relações e tensões densas ou harmônicas dos atores sociais. Assim, o nosso imperador mandou “dizer ao povo que fico”, num episódio de afirmação, ou seja, o sim, que entrou para a história como o Dia do Fico. Mas Pedro, o outro, no episódio bíblico negou Cristo, não só uma vez, e sim nas reiteradas “três vezes”. Negar é dizer não.

Motivações não lhe faltariam? Não cabe aqui julgá-lo.

Nos episódios revolucionários, em defesa dos seus pescoços, provavelmente silenciando ideias verdadeiramente nobres, inconfidentes baianos ou mineiros disseram não, mas a Coroa disse sim à execução de alguns dos nossos heróis. Maria Quitéria negou a sua condição feminina, transitória em farda masculina, no desejo de servir ao imperador. Os tentáculos da opressão operam milagres nefastos, cruéis, e muitos, sobre este espectro do ódio, da dor e da perseguição, na tortura, enfim, disseram não ou talvez sim? Caetano cantou “é proibido proibir” dizendo que a “mãe da virgem diz que não”.

Mas o que pode soar como uma inoportuna “lenga-lenga” justifica-se para abordar o que segue. De há muito o corpo religioso do segmento de matriz africana escondia-se em um “não”, e para um exercício razoável dos rituais sagrados do candomblé, buscava-se o “sim”, a possível realização, ocultando-se no “sincretismo”, um disfarce em tempos opressores.

Mais tarde, embora o Estado dissesse não, em uma ação de perseguição inolvidável, invadindo templos, o “sim”, ou seja, o exercício dos rituais litúrgicos só se fazia mediante autorização policial. A campanha depreciativa, sistemática, contra o candomblé, impondo-lhe proximidade com a barbárie e a feitiçaria, fizera muitos negarem sua vinculação religiosa de base africana, a sua filiação legítima.

Presenciei, em tempos de outrora, veneráveis personalidades do povo-de-santo não exibindo as suas contas sacrossantas por temer censura ou embaraços. Não seria incomum neste contexto histórico que muitos se afirmassem católicos. Mas, afinal, o dia da assunção plena, dizendo “alto e bom som” a sua verdadeira convicção religiosa, chegara.

Reunidos no Teatro Gláucio Gil, coordenada pelo Coletivo de Entidades Negras (CEN) e pela Superintendência de Direitos Humanos Coletivos e Difusos (Superdir), foi lançada a campanha “Quem é de Axé diz que é!” Razões históricas amparam esta iniciativa, mas, muito além do lançamento desta campanha, fora assinado um convênio entre a Superdir e a Secretaria de Promoção de Políticas da Igualdade Racial (Seppir) que objetiva a criação do Centro de Referência de Enfrentamento à Intolerância Religiosa e a Promoção dos Direitos Humanos e do termo de compromisso para catalogação das peças religiosas de matriz africana que foram aprisionadas entre os anos 30 e 40, principalmente.

O lançamento da campanha foi comemorado com alegria, um grupo de ialorixás e babalorixás presentes vibrou em cortejo.

Creio que para Marcos Rezende, coordenadorgeral do CEN, e demais nobres fiéis realizadores e colaboradores, o momento é de grande e ampla divulgação, por isso, sirvo-me deste espaço para dar “a boa nova”.

Chegou o momento de o “sim” vencer o “não”, o momento de assumir, sem receio, o que a lei e a fé nos permitem. Deste modo, quando o rapaz ou a moça do IBGE bater na sua porta, receba-o bem, com educação; dê-lhe água fresquinha, pois a sua tarefa é árdua; sirva-lhe um cafezinho, feito na hora; quem sabe, biscoitos, banana frita ou acarajé e abará.

Mande-o sentar, e ao ser perguntado sobre a sua religião, não tema, diga e repita, para que ouça bem e com clareza: “Meu nego, eu sou filho de Oxalá”. “Minha filha, eu sou do candomblé, sou do Axé, e você? Anote aí. Que ele mesmo te proteja e te livre das horas más. Vá na paz de Oxalá. Que ele mesmo abençoe a você e todos os seus, lembrança, e apareça! Mas aproveite também para participar, caso o seu tempo permita, dos grupos de gestão do Censo. Há inclusive, a possibilidade de responder no próprio site do IBGE”.
Quando o IBGE perguntar sobre sua religião, diga com clareza: “Eu sou do candomblé, sou do Axé”

quarta-feira, 14 de abril de 2010

terça-feira, 13 de abril de 2010

Agressão a terreiros

Por Emiliano José
Num momento da história, tragédia. Noutro, farsa. Lembro-me de Marx, justo dele, um materialista convicto, quando vejo movimentos da Prefeitura de Salvador contra as religiões de matriz africana. Por que esses movimentos, por que essa má vontade com o candomblé? Quais as motivações? Poderia dizer que é como se a atual administração ouvisse ecos do passado escravocrata ou, até mesmo, do século XX, quando a religião dos negros ainda tinha que pedir licença policial para realizar seus ritos.
Fico aqui a matutar sobre como reagiram os religiosos do Ilê Odô Ogê, terreiro também conhecido como Pilão de Prata, ao receberem um jovem fiscal da Prefeitura, no dia 18 de março deste ano. Constrangido, notificava a casa religiosa pelo barulho provocado pelos “instrumentos de percussão”, que era como ele se referia aos atabaques. A notificação dizia que a “emissão sonora gerada em atividades não residenciais” somente poderia ocorrer se autorizada pela Prefeitura. Incrível, mas verdadeiro. Penso na lei, na isonomia, e constato a óbvia discriminação. Com essa atitude, agride-se notoriamente o dispositivo constitucional da liberdade de culto.
Ao fiscal, explicou-se que a roça do Ilê Odô Ogê nascera lá pelos idos de 1963, que o terreiro fora tombado em 2004. Tratava-se de um templo já tradicional. Ao jovem fiscal foram mostrados o Museu e a Biblioteca do terreiro. Não havia diálogo, não se admitia conversa. Ele tinha que lavrar o auto. Por que isso só ocorre apenas com as religiões de matriz africana? Por que essa perseguição à religião dos negros, assumidamente religião de negros? Por que essa dificuldade em lidar com a diversidade religiosa? Por que essa intolerância que não cessa? Por que não se aplica o princípio de que toda religião tem que ser igualmente respeitada? A Prefeitura – ou se quisermos o Estado, em sentido amplo – tem obrigação de ser laica e na sua laicidade fazer respeitar toda e qualquer religião.
Provavelmente, embora seja quase inacreditável, haja quem, na Prefeitura, ainda queira obrigar os terreiros de candomblé a tirar licença para cumprir os seus rituais, procedimento que foi abolido na Bahia em 1975. Tardiamente, mas abolido. A atitude do jovem fiscal evidencia que o ovo da serpente da discriminação, do preconceito ainda tem acolhimento, e não tão disfarçadamente. O espectro da Casa Grande continua a nos rondar. Eu me pergunto se o prefeito João Henrique tem conhecimento disso. Seguramente, o culpado não pode ser encontrado no jovem fiscal. Ele apenas obedece ordens.
A Prefeitura vem agindo de modo rotineiramente perverso com as religiões de matriz africana. Falar apenas em erros denotaria ingenuidade. São vários episódios. Lembro-me de outro, recente. Em 2008, a agressão atingiu o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, o célebre terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, o mais antigo templo afro-brasileiro em funcionamento, cuja fundação remonta ao início do século XIX, tido como uma espécie de “mãe de todas as casas” de santo do Brasil. É uma casa respeitadíssima. O então governador Waldir Pires, em 1987, declarou de utilidade pública para fins de desapropriação o posto de gasolina que ocupava área da Casa Branca, e aí surgiu então a Praça de Oxum, cujo projeto de urbanização foi de Oscar Niemeyer.
Pois bem, em 2008 a Prefeitura pediu o arresto do imóvel onde se encontra o terreiro da Casa Branca, depois de autuar uma sacerdotisa falecida há 80 anos por uma suposta dívida relativa ao IPTU. Seria cômico, não fosse trágico. Claro que um terreiro como a Casa Branca, visitado por governadores e presidentes, respeitado por outros credos não pode ser agredido assim impunemente, e a Prefeitura teve que recuar diante das reações. Se, no entanto, fazem isso com a Casa Branca, imaginemos o que continuarão a fazer com os demais terreiros, muitos deles pequenos, sem a notoriedade do Ilê Axé Iyá Nassô Oká. Creio que se impõe a todos os que defendem o respeito à diversidade religiosa, que se impeça o crescimento dessa atitude odiosa por parte da administração municipal em relação ao candomblé. Viva a liberdade religiosa.
Publicado no jornal A Tarde (12/04/2010)

FONTE: http://www.emilianojose.com.br/?event=Site.dspNoticiaDetalhe&noticia_id=341

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Mapeamento dos terreiros em Recife (PE) e região metropolitana

O mapeamento dos terreiros localizados em Recife (PE) e região metropolitana será lançado nesta sexta-feira (9), às 15h, na capital pernambucana. O evento, que contará com a presença do subsecretário de Políticas para Comunidades Tradicionais de Terreiro da SEPPIR, Alexandro Reis, será no Centro Cultural Rossini Alves Couto, no Ministério Público do Estado (Av. Visconde de Suassuna, 99, Boa Vista).

O mapeamento será realizado pela SEPPIR e Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em parceria com a Fundação Cultural Palmares e a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO). A execução fica por conta da Associação Filme de Quintal, ganhadora da licitação realizada no ano passado.

A iniciativa integra o Projeto Terreiros do Brasil, desenvolvido pela SEPPIR com o objetivo de articular políticas públicas para o fortalecimento institucional e melhoria da qualidade de vida das comunidades tradicionais de terreiro do país. Dentro do Projeto, também serão realizados mapeamentos em Belo Horizonte (MG), Belém (PA) e Porto Alegre (RS).

A expectativa é mapear, no mínimo, 6 mil comunidades de terreiro nas quatro capitais e regiões metropolitanas. Iniciativas similares trabalham a identificação de terreiros em Salvador (BA), Rio de Janeiro (RJ) e Distrito Federal.


Comunicação Social da SEPPIR /PR


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Postado por Y.Valentim no Coletivo de Entidades Negras em 4/08/2010 06:47:00 PM

sábado, 10 de abril de 2010

A luta segue por novos caminhos


 
Entrevista de Júlio Santana Braga


NA APRESENTAÇÃO de matérias sobre a população negra da Bahia e a evolução de sua luta contra a desigualdade e o preconceito racial, ESTUDOS AVANÇADOS entrevistou Júlio Santana Braga, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBa). Seu depoimento é valioso porque ele, como antropólogo, realizou pesquisas durante dez anos na África e é uma das figuras mais expressivas dos candomblés em Salvador, além de auxiliar as autoridades baianas em seu relacionamento com as organizações de afro-descendentes. A entrevista foi obtida num intervalo de uma reunião do Conselho Estadual de Cultura, no dia 12 de fevereiro, em Salvador.
ESTUDOS AVANÇADOS – O que está acontecendo aqui, em Salvador, para que o preconceito racial na sociedade seja efetivamente superado?
Júlio Santana Braga – Deveríamos pensar um pouco sobre a história de uma atitude e de uma ação contra as formas mais diferenciadas de preconceito racial. Nesse sentido, há uma revolução que surgiu na Bahia – e principalmente em Salvador – de movimentos organizados que lutam pela erradicação das diversas formas desse preconceito.
O preconceito racial na Bahia é muito grande, até porque a população negra é também muito grande. Poderia ser o inverso, mas o fato de a maioria da população ser negra acentua ainda mais os níveis de preconceito. A partir da década de 1970 teve início uma reviravolta na sociedade, que, histórica e erradamente, era considerada uma minoria étnica, quando os negros eram e são a maioria na população baiana.
Esses grupos nasceram, em parte, devido a vontade de se colocarem no grande leque das atividades lúdicas da cidade. Mas logo depois se constituíram em núcleos que procuram os mecanismos que podem ser acionados para uma revisão da desigualdade na Bahia. Dois grupos, criados quase no mesmo momento, são importantes: o Olodum e o Ilê Ayê, em 1974, mas que somente passaram a se expressar como valor cultural em 1976. Eles tiveram a capacidade de fazer com que uma parcela da grande população baiana passasse a avaliar a situação do negro na sociedade, assim como também a equacionar os mecanismos para que essa situação fosse revista. Não tenho elementos para dizer se isso foi conseguido ou não.
Na verdade, houve alterações consideráveis no que se refere a se ver o negro não como um elemento auxiliar da sociedade e da cultura, mas como um elemento importante e, sobretudo, diferenciado de tudo o que acontece na Bahia, do ponto de vista de uma cultura "popular". Esses grupos expressam, sobretudo, uma novidade na história dessa população, porque deixaram de ser participantes das grandes promoções artísticas e culturais da Bahia a fim de serem seus promotores. Esse é um diferencial muito grande, porque eles estão conscientes desses valores e também estão se apoderando deles. Pois são eles próprios que constroem os instrumentos com os quais trabalham.

O comportamento das autoridades
Acredito que, atualmente, estejamos num momento positivo. Isso porque podemos repensar essa situação, não só da população negra na Bahia, a partir de seus movimentos, mas também incitar o governo a repensá-la.
Temos hoje uma Secretaria Estadual de Cultura e Turismo, administrada pelo dr. Paulo Gaudenzi, e também um órgão no município de Salvador (a Secretaria da Reparação), que têm uma maneira diferenciada de pensar os valores étnicos. O convite que me foi feito pelo governador dr. Paulo Souto, para participar do Conselho Estadual de Cultura, e a tantos outros ligados à cultura popular, parece expressar o desejo institucional de se ter, nos centros de reflexão, pessoas que trabalham, no dia-a-dia, com temas ligados às mais diferentes áreas da cultura baiana, onde a cultura afro-brasileira tem papel significativo. Essa instituição sempre cuidou, preferencialmente, das discussões voltadas para a cultura acadêmica, a cultura de elite.
Trouxemos para o Conselho a informação – e avaliação – do 25º Concurso da Beleza Negra, promovido pelo Ilê Ayê em seu 30º ano. O grande diferencial da Bahia (do ponto de vista cultural, com reflexos na economia, através do turismo) é sua população negra e suas múltiplas manifestações culturais.
Esse concurso é um momento marcante na história da cidade. Uma festa assistida por mais de quatro mil pessoas que tem, em sua maioria, dificuldades para pagar vinte ou vinte e cinco reais por um ingresso.
É importante dizer que não se trata de um espetáculo de dança, pois é um espetáculo de etnicidade, de identidade. E aquela multidão não é formada apenas de espectadores; são atores de uma mesma encenação de etnicidade, de valorização de uma estética negra, refletida na beleza das dançarinas, da percussão, dos cânticos do Ilê, todos eles clamando inclusão, justiça social e igualdade entre os homens.
Por isso sou otimista. Penso que a sociedade negra está numa direção boa, no sentido de projetar-se cada vez mais, por meio de suas instituições e de seus valores culturais, que foram e serão os diferenciais na cultura baiana. A cultura negra está presente em todos os setores da sociedade baiana e tudo o que acontece na Bahia tem uma cabeça negra ou mestiça fazendo esse diferencial.


Um antropólogo no candomblé
ESTUDOS AVANÇADOS – Gostaria que o senhor falasse sobre a relação existente entre sua formação acadêmica, como antropólogo, e sua ligação com o candomblé.
Júlio Santana Braga – Sempre deixo de lado essa questão. Mas ela é importante para enfatizar o que é o estar presente de um doutor em antropologia, quando, ao mesmo tempo, se é um homem do povo, absolutamente integrado nas comunidades religiosas afro-brasileiras, especialmente nos candomblés da Bahia. Se eu fosse apenas o antropólogo que escreveu dez livros, com pós-doutorado em Boston e na Faculdade de Ciências Humanas de Estrasburgo, talvez não estivesse assessorando o Secretário de Cultura e Turismo do Estado, nem estivesse na honrada condição de membro do Conselho de Cultura. Trago para o epicentro dessas discussões uma experiência que não é puramente acadêmica. Não sei se você sabe, mas moro num candomblé. Tenho um apartamento, mas o alugo para manter a comunidade religiosa na qual sou sacerdote. Trago uma experiência que às vezes é exótica, mas meu trabalho é exatamente fazer pensar que não há exotismo algum em ser da comunidade e doutor em antropologia.
ESTUDOS AVANÇADOS– O candomblé foi muito perseguido. Pergunto: hoje o candomblé ainda é o mesmo que resistiu à perseguição policial? Para se legalizar, ele perdeu aquele tom subversivo?
Júlio Santana Braga – Escrevi um livro sobre isso, chamado de Na gamela do feitiço, em que realizo um estudo da repressão policial ao candomblé. O período em que mais houve essa perseguição foi na década de 1920, destacando-se aí o delegado Pedro Azevedo Gordilho, que foi o grande inquisidor da cultura religiosa. Ele realizou uma perseguição que não refletia somente a cabeça de um delegado de polícia, mas sim de toda a sociedade baiana. Naquela década, era a da segunda geração posterior à abolição da escravatura, e o candomblé era uma espécie de tormento para todos os padrões culturais na Bahia. Há um dado ponderável nisso tudo: as grandes correntes teóricas, antropológicas e sociológicas estiveram sempre a refletir as religiões como algo "retrógrado". A religião do candomblé criou estratégias de resistência diversificadas, com uma política de negociação e de resultados. E foi guardiã de um pensamento revolucionário. Assim, por exemplo, quando Edison Carneiro, pela sua militância política, estava para ser preso, foi numa casa de candomblé que ele se refugiou por quase seis meses.
Mas, se antes era a sociedade dominante, através de algumas instituições, que direcionavam tais políticas contra o candomblé, atualmente nossos inimigos mais perigosos estão nas igrejas pentecostais, fundamentalistas, sobretudo a Igreja Universal do Reino de Deus. Hoje elas são nossos grandes inimigos, pois afirmam que as religiões afro-brasileiras, de toda a natureza, são demoníacas.

A posição das outras igrejas
ESTUDOS AVANÇADOS A Igreja Católica não mantém mais aquela posição do passado, não é?
Júlio Santana Braga – Sim, ela evoluiu. Acredito que se tornou mais cristã. Acolhendo a população negra, as irmandades religiosas surgiram como uma estratégia da Igreja Católica para controlar os movimentos e as ações dos negros, mas também para convertê-los, a fim de fortalecer as fileiras dos cristãos na Bahia. Mas as atividades desenvolvidas pelos negros, dentro de suas irmandades, como a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, a Sociedade Protetora dos Desvalidos, e tantas outras, iam além do que pretendia o clero. Elas se transformaram em grandes centros de resistência contra-aculturativa e muito da cultura africana, inclusive o sentido profundo de religiosidade do negro, foi preservado. A Igreja Católica não parece ter reagido duramente em relação ao que acontecia e, assim, foi igualmente responsável por um processo de sincretismo religioso que ali se iniciou.
Ademais, ela perdeu esse poder de conversão religiosa. Hoje, não há um enfrentamento da Igreja Católica com a religiosidade afro-brasileira. O contrário sucede com as igrejas fundamentalistas, com as quais há um confronto permanente. Isso porque nessas igrejas há uma declarada vontade de se ocupar espaços, utilizando como processo ardiloso a demonização das divindades afro-brasileiras, para depois processar, nas suas famigeradas sessões, o que eles denominam de expurgação desses demônios. Então, agora há uma grande luta, mas mudaram os personagens.

Pesquisas na África
ESTUDOS AVANÇADOS O senhor é um dos pesquisadores baianos que foram para o continente negro, durante alguns anos, porque havia interesse do Centro de Estudos Afro-Orientais, da Universidade da Bahia, de manter relações com a África. A preocupação em estimular, aqui no Brasil, os estudos sobre a África era e é correta?
Júlio Santana Braga – Esses estudos têm aspectos positivos e negativos. Na década de 1960 fui para Benin e na África vivi por quase oito anos. Fui, talvez, o único baiano a efetivamente residir lá, naquela época. Aquela atividade foi valiosa na medida em que se voltou a atenção para o continente matricial. Conhecer as bases dessa matriz foi muito importante, não só pela comparação de uma identidade absurdamente aniquilada. Paralelamente, essa ida de pesquisadores à África significava a recuperação de uma geografia religiosa perdida e fragmentada. Havia, então, a preocupação de entender a dimensão do continente e a importância de sua diversidade cultural. Mas essa experiência foi também negativa, porque o retorno à África se deu num ponto só do continente africano – em particular na Nigéria e no Benin.
Esse processo teve um caminho único, em vez de diversificarmos a ida a diferentes regiões africanas, relacionadas historicamente com a formação da nossa cultura, concentramonos na Nigéria. Em vez de uma reafricanização, ocorreu uma iorubanização, uma nagoização, se não da cultura, talvez de uma memória coletiva. Esquecemos outras matrizes africanas igualmente importantes. Só recentemente tentamos ir a Angola. Mas, com a guerra nesse país, não foi possível a permanência ali, assim como o estudo de sua realidade. Na própria África ocidental não foram pesquisadas várias culturas e no Benin foi estudada apenas a Fon, aqui indistintamente chamada de jêje. Também não nos estendemos para a faixa litorânea da África. Esse foi um aspecto negativo, mas hoje existe uma certa mudança de pensamento, uma vontade de diversificar essas viagens para várias regiões desse imenso continente.

Acesse o artigo original: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100013

Importância da Casa das Minas do Maranhão


Dr. Sergio Ferretti
A Casa das Minas Jeje tem sido reconhecida por diversos pesquisadores, autoridades em geral e pela tradição do povo-de-santo como a representante mais antiga da tradição Mina-Jeje no Maranhão e necessita ser amparada pelo instrumento jurídico do tombamento, que dará maiores garantias de continuidade e de preservação de seu espaço físico.
Tendo a cidade de São Luís sido reconhecida pela UNESCO, em 1998, como Patrimônio da Humanidade, a Irmandade da Casa das Minas considera importante que ela também seja tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e pelo Patrimônio Histórico do Estado do Maranhão e que seja incluída oficialmente na relação dos bens culturais do Estado. Em 1985 o assunto foi discutido, com a presença da arquiteta Dora de Alcântara, do IPHAN, por ocasião do Seminário preparatório ao colóquio internacional organizado pela UNESCO em são Luís, que discutiu Sobrevivências das Tradições Religiosas Africanas na América Latina e no Caribe.
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Em 1999, a chefe da Casa das Minas solicitou que a Comissão Maranhense de Folclore se interessasse junto à Fundação Cultural do Maranhão e colaborasse no que fosse possível para providenciar este tombamento.
O Brasil, que já tem 500 anos, é ainda pouco conhecido por nós brasileiros. Mesmo no Maranhão, pouca gente conhece a Casa das Minas. Embora desde 1938 muitos trabalhos científicos e literários tenham sido escritos sobre essa casa, ela se tornou mais divulgada a partir de 1975, com a publicação do romance "Os Tambores de São Luís", do escritor maranhense Josué Montello, da Academia Brasileira de Letras.
A contribuição do negro como um dos elementos fundadores e constitutivos da nação brasileira ainda é pouco reconhecida. Os meios de comunicação divulgam que São Luís foi fundada por franceses, que, como os holandeses, permaneceram menos de dois anos no primeiro meio século da história da cidade. A contribuição dos europeus para a história do Maranhão tem sido razoavelmente conhecida e divulgada por historiadores e literatos. A contribuição dos elementos negro e indígena, infelizmente, ainda é pouco conhecida no Brasil, de modo geral, e especialmente no Maranhão. O esforço de antropólogos, historiadores e literatos não tem sido suficiente para se ampliar esse reconhecimento.
Dizer que o negro, o índio e o branco são formadores de nossa cultura é dizer pouco. Quem são os negros, índios e brancos que construíram o Maranhão? Em relação aos negros, quando eles aqui chegaram, não se consideravam negros, nem pretos, nem africanos e muito menos escravos. Em suas terras, eles eram homens, mulheres e crianças, camponeses ou trabalhadores urbanos, guerreiros, sacerdotes, príncipes e gente de vários povos, chamados entre eles de mina, nagô, tapa, camundá, moçambique, bijagó, balanta, felupe, cachéu, cabo verde, mandinga, angico, angola, benguela, cambinda, congos e outras das numerosas nações e etnias que foram trazidas como escravas para o Brasil e para o Maranhão, em grande quantidade, e aqui, sobretudo entre 1750 e 1850, o último século do tráfico de escravos.
A Casa Grande das Minas, ou Casa das Minas Jeje, ou Querebentã de Zomadônu - seu nome africano, ou simplesmente Casa das Minas, como é mais conhecida, é a casa mais antiga de culto africano do Maranhão e uma das mais antigas do Brasil. É o único terreiro de nação mina jeje entre nós e foi organizada por africanos trazidos de contrabando.
Foi fundada em data desconhecida e depois estabelecida no bairro da Madre de Deus, tendo sido plantada, junto com algumas árvores, ainda lá existentes, à rua de São Pantaleão, nº 857, onde funciona há mais de um século e meio, desde meados da década de 1840, como nos é dado conhecer. Somente o Governo do Estado, a Arquidiocese de São Luís, a Santa Casa de Misericórdia, algumas irmandades religiosas (como a de São Benedito e de Bom Jesus dos Navegantes) e sociedades secretas (como a Maçonaria), que não podem ser identificadas, são das poucas instituições maranhenses mais antigas do que a Casa das Minas Jeje.
Os primeiros escritos hoje conhecidos, que se referem à Casa das Minas, começam a surgir apenas na segunda metade da década de 30. Antes disso, de acordo com escritos de Luiz Mott sobre a inquisição (1995), parece que os tambores não eram ouvidos no Maranhão, como afirma aquele pesquisador:
"não encontramos sequer uma referência à prática de rituais e cerimônias de origem africana no Maranhão colonial - nem mesmo os populares calundus que aparecem citados, sobretudo no século XVIII, do Piauí à capitania de São Paulo. Provavelmente os tambores de mina e rituais congêneres deviam ser praticados tão clandestinamente que os tantãs dos atabaques não chegavam os pios ouvidos dos fiéis mais afeitos às denúncias junto ao Santo Ofício". (Mott, 1995: 19).
Pouco antes da independência, em 1818, dom frei Francisco de Nossa Senhora dos Prazeres informa a respeito de negros, que a irmandade de São Benedito dos Pretos era a mais numerosa de São Luís. Sobre os escravos, na referência mais antiga sobre os tambores do Maranhão que temos notícia, aquele frade afirma que:
"para suavizar a sua triste condição fazem, nos dias de guarda e suas vésperas, uma dansa denominada batuque, porque n’ella uzam de uma espécie de tambor, que tem este nome. Esta dansa é acompanhada de uma desconcertada cantoria, que se ouve muito longe." (Prazeres, 1891: 138).
A graduanda em História da Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Emanuela Sousa Ribeiro, em pesquisas realizadas no ano de 1998 no Arquivo Público do Maranhão, por nós orientada informa:
"Já em 1884, Casa Grande das Minas tinha um status diferente das demais, pois que já era assumidamente um local de Mina, apesar de utilizar ainda nos seus requerimentos a expressão bricandeira para tratar de mina. (Ribeiro, 1998: 14)
A mesma pesquisadora informa que, naquele ano, Virgínia Maria da Conceição solicitava permissão para, durante seis meses, ter lugar a brincadeira, na Casa Grande das Minas à rua de São Pantaleão. Informa também que, em 1912, Hosanna da Conceição Ferreira pede licença à Secretaria de Polícia pois estava:
"precisando festejar (com as demais pessoas componentes de uma Irmandade Religiosa, muito antiga, sob sua direção, nesta capital, à Rua de São Pantaleão sob o nº 199, - na conhecida Casa das Minas) o Glorioso São João Batista, com ladainhas e tocadas e dansas de tambor religioso - de Minas" (Ribeiro, 1998: 15)
Em 1896, em visita que fez ao Maranhão, o médico Raimundo Nina Rodrigues (1977:213) informa que "verificou pessoalmente a existência de negros iorubanos e jejes e a disseminação das suas crenças na população brasileira". Diz (1977:107), que foi: "visitar os últimos negros africanos que existiam na capital daquele estado e que são ali geralmente conhecidos por negro mina. Eram duas velhas, uma jêje... e outra nagô de Abeukutá, residindo ambas em pequenas casinhas nas proximidades de São Pantaleão". Afirma que visitou o terreiro em que os filiados eram umas vinte e poucas negras e mulatas.
Como vemos, ao longo do século XIX e em inícios do século XX quase não se tem referências escritas a práticas religiosas dos negos, que eram chamados genericamente de batuques e para as quais era necessário solicitar autorização à delegacia de costumes e diversões. Apesar da constituição republicana garantir a liberdade religiosa, tal prática perdurou no Maranhão ainda um século após abolida a escravidão. Só a partir de fins da década de 30 alguns intelectuais e pesquisadores vindos de fora irão se interessar em conhecer essas práticas que ainda são pouco conhecidas por muitos maranhenses.
O escritor espanhol Álvaro de Las Casas (s/d: 65/66), em viagem ao Norte do Brasil em 1938, conta que visitou a Casa das Minas em companhia de Dr. Tarquínio Filho e que ficou contente de saber que na "raça negra" há classes sociais e linhagens que se julgam de ascendência nobre e não se misturam e que as linhas mais aristocráticas que estão no Brasil vivem no Maranhão. Considerou a casa grande, abastada, muito limpa e arranjada e das mais distintas. Disse também que dona Andresa pareceu-lhe não gostar de estranhos, mas era muito hospitaleira. Passeou no terreiro onde, à sombra das árvores, palestrou amigavelmente e saboreou sapotis deliciosas. Diz que lá se celebram danças litúrgicas nas noites consagradas, que duram de três a quatro dias. Perguntou indiscretamente à velha Andresa se ela previa o futuro, ao que ela lhe respondeu com dignidade: "Esta não é casa de feitiçaria. Vivemos de acordo com os nossos hábitos e continuamos o culto de nossos antepassados. Não fazemos mal a ninguém nem tomamos conta das vidas alheias". Diz que saiu envergonhado e que a lição lhe provava tanto a gentileza de mãe Andresa quanto sua irreverência de jornalista.
No mesmo ano de 1938 a Casa das Minas foi visitada pelo etno-lingüista português Edmundo Correia Lopes, que publicou vários artigos analisando, sobretudo, elementos da língua mina-jeje utilizada na Casa e chamada na África de Ewê-Fon, afirmando recear que o vasto patrimônio musical, coreográfico, psicológico, histórico e folclórico desse grande terreiro jeje nunca viesse a ter o estudo que merece.
O médico veterinário maranhense Raimundo Nunes Pereira, filho e sobrinho de iniciadas na Casa das Minas, realizou pesquisa na Casa em 1942. Diz que muitas informações lhe foram facilitadas por haver estado lá na infância e por ter parentesco com pessoas do culto do qual era participante, tendo conquistado grande confiança de mãe Andresa. Em 1947, com o apoio e prefácio de Arthur Ramos, publicou "A Casa das Minas", trabalho que qualifica de "um depoimento" e que foi muito importante para o conhecimento dos jejes do Maranhão.
O antropólogo paulista Octávio da Costa Eduardo, orientando de Melville Herskovits, da Universidade de Colúmbia, passou nove meses no Maranhão em 1944/45. Estudou cuidadosamente a Casa das Minas, a Casa de Nagô e o povoado de Santo Antônio dos Pretos, em Codó. Em 1948 publicou, em Nova York, sua tese: "O Negro no Noroeste do Brasil" apresentando importantes informações sobre este e outros terreiros.
O etnógrafo francês Pierre Verger esteve pela primeira vez no Maranhão em agosto de 1948, onde fez cerca de 250 registros fotográficos inclusive da Casa de Nagô, da rua das Crioulas, e da Casa das Minas. Aprendeu com mãe Andresa nomes misteriosos de alguns voduns ali cultuados e que meses mais tarde representaram papel importante facilitando suas pesquisas na África. Em fins de 1948, chegou a Abomé, capital do antigo reino do Daomé. Informa que os nomes dos voduns anotados em São Luís pertenciam à família real de Abomé. Alguns eram conhecidos somente pelos sacerdotes e serviram como senha junto ao chefe do culto da divindade Zomadônu, para quem são feitas oferendas aos antigos reis.
Em 1952, Verger publicou importante artigo onde revela a identificação entre voduns cultuados no Maranhão e divindades protetoras de reis que governaram no Daomé até 1779. Apresentou então a hipótese de que Na Agontimé, uma das viúvas do rei Agonglô e mãe do futuro rei Ghezo, vendida como escrava por Adandosã, seu meio irmão, deve ter trazido para São Luís o culto dos voduns reais de Abomé. Essa hipótese apresentada por Verger foi reconhecida em 1985 como verossímil no Colóquio sobre sobrevivências religiosas africanas na América Latina e Caribe, organizado pela UNESCO, em São Luís.
Verger, no mesmo artigo, apresenta informações que julgamos interessante lembrar aqui. Diz que o trono do rei do Daomé tinha o caráter sagrado e não podia ser destruído. O rei Ghezo destronou seu meio irmão e como vingança mandou seu trono de presente para D. Pedro I, junto com a expedição que enviou ao Brasil a procura de sua mãe, vendida como escrava. Até hoje esse trono, esculpido em madeira, se encontra no acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, junto com outros objetos, como uma tapeçaria em tecido colorido feitos no Daomé com motivos alegóricos do poder real. Verger informa que esse tipo de artesanato em tecido é utilizado no Daomé desde fins do século XVIII, na época do rei Agonglô, e sua fabricação é uma exclusividade da família Yemadjé, de alfaiates decoradores, da qual descende Nã Agontimé, a esposa do rei Agonglô que foi vendia como escrava. Até hoje eles são fabricantes de bonés, guarda-sóis, bandeiras, tapeçarias e painéis de tela como alguns expostos na mostra que ilustra a exposição Povo de Mina, na galeria Zelinda Lima do Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho.
Em 1953, o vice-presidente da República, Café Filho, assistiu a uma cerimônia na Casa das Minas e no mesmo ano o sociólogo francês Roger Bastide, que inovou os estudos afro-brasileiros, visitou também a Casa e sobre ela escreveu várias páginas discutindo aspectos do culto aos voduns. Estudando a área religiosa afro-maranhense, considerou São Luís uma ilha de resistência daomeana, onde os negros estiveram isolados do contato com outras civilizações, e constatou que essa área ficou muito tempo abandonada pelos africanistas brasileiros, inclusive dos que procuravam vestígios daomenos que, devido a influências do culto dos voduns no Haiti, o confundiam com o culto das serpentes. Bastide (1971: 264) afirma que a casa de mãe Andresa é "um pedaço do Daomé do lado de cá do Atlântico". Em diversos livros que escreveu, Bastide faz referências aos ritos de iniciação na Casa das Minas, à hierarquia entre as divindades e entre os membros do culto, a características das divindades cultuadas e a diversas cerimônias e rituais.
Depois de Bastide, muitos pesquisadores brasileiros e estrangeiros continuam visitando, pesquisando e escrevendo sobre a Casa das Minas. A escritora norte-americana Judith Gleazon visitou a Casa nos anos 60 junto com Dra. Flor-de-Liz Nina, tendo conversado com dona Amância e outras vodunsis. Em 1970, Gleazon publicou, em Nova York, um romance, infelizmente não traduzido, sobre a história de Na Agontimé, de grande interesse para a Casa das Minas. A antropóloga Maria Amália Pereira Barreto escreveu dissertação de mestrado e publicou, em São Luís, livro tratando da Casa e nós próprios redigimos dissertação de mestrado, tese de doutorado e publicamos dois livros sobre a Casa das Minas, em 1985 e em 1995.
Merece destaque o romancista e etnógrafo alemão Hubert Fichte, falecido prematuramente em 1986 e que em 1982/83 passou oito meses estudando a Casa das Minas e publicou em seu pais vários trabalhos sobre a mesma. O antropólogo espanhol Luís Nicolau Pares defendeu recentemente, em Londres, tese de doutorado sobre transe e possessão, fazendo muitas referências a esse e a outros terreiros de São Luís.
Alguns maranhenses reclamam que muitos pesquisadores deixaram de pesquisar fatos importantes sobre outras casas de culto do Maranhão, concentrando-se exclusivamente na Casa das Minas. Felizmente, hoje essa crítica aos estudos religiosos afro-maranhenses está sendo superada pelas novas gerações de estudantes e pesquisadores. Mas a Casa das Minas, apesar de razoavelmente conhecida na literatura antropológica, preserva muitos mistérios que instigam os antropólogos que a continuam estudando. Temos notícia de um jovem cientista social do Maranhão que está elaborando dissertação de mestrado em antropologia sobre o declínio da Casa das Minas e de um antropólogo lingüista do Benin que defendeu dissertação de mestrado e está elaborando tese de doutorado tratando da linguagem dos voduns.
O grande intelectual e artista Mário de Andrade, que em 1938 organizou pesquisas de registro musical sobre a cultura popular do Norte e Nordeste, inclusive sobre o tambor de crioula e o tambor de mina do Maranhão, como sabemos, foi um dos idealizadores do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Se tivesse vivido mais tempo certamente Mário de Andrade teria imprimido ao processo de tombamento de bens culturais no Brasil um caráter mais abrangente do que esse Instituto passou a ter. A partir da época do centenário da abolição da escravidão, essa lacuna foi resgatada pois o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional passou a incluir, entre os bens tombados, alguns templos de culto afro na Bahia, fato que teve continuidade com órgãos municipais e estaduais de patrimônio histórico em outros lugares. No Maranhão, a Casa das Minas necessita da proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Estadual como reconhecimento a um dos mais importantes símbolos de uma cultura que veio da África e se implantou no Brasil.
Embora com número reduzido de vodunsis e deixando de fazer certos rituais que existiam no tempo de mãe Andresa, a Casa das Minas continua realizando suas obrigações para com os voduns, algumas das quais exigindo do grupo grandes sacrifícios e realizadas com técnicas hoje pouco utilizadas, como, entre outras, o fogo de lenha em caldeirão de ferro sobre trempe, a pipoca estourada na areia quente e o uso de pilão de pedra e de madeira.
A Casa das Minas é um dos exemplos mais expressivos de afirmação de identidade étnica por afro-brasileiros e de valorização de uma cultura, mesmo quando esta não é vista pelos de fora como a mais evoluída ou autêntica. Por essas e outras razões, merece ser tombada como bem cultural pelo patrimônio histórico.
Bibliografia Consultada
ALVARENGA, Oneyda. Tambor-de-mina e tambor-de-crioulo. Registros sonoros do folclore musical brasileiro. São Paulo: Discoteca Pública Municipal, 1948.
BARRETO, Maria Amália Pereira. Os voduns do Maranhão. São Luís: Fundação Cultural, 1977.
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: Pioneira/ Edusp, 1971, 2 vols. (Original 1960).
EDUARDO, Octácio da Costa. The negro in Norther Brazil: a study in acculturation. New York, J. Augustin Publisher, 1948.
FERRETTI, Sergio F. Querebentan de Zomadônu. Etnografia da Casa das Minas do Maranhão. São Luís: EDUFMA, 1996  (Original 1985).
_________. Repensando o Sincretismo. São Paulo/ São Luís: EDUSP / FAPEMA, 1995.
FICHTE, Hubert. Etnopoesia. Antropologia poética das religiões afro-americanas. São Paulo, Brasiliense, 1987.
________. Das haus der mina in São Luiz de Maranhão. Frankfurt: S. Fisher, 1989.
________. Explosion. Roman der Ethnoligie. Frankfurt: S. Fisher, 1993.
LAS CASAS, Álvaro de. Na labareda dos Trópicos. Viagem ao Norte do Brasil. Rio de Janeiro: A Noite, S/D (1938).
GLEAZON, Judith. Agotime, her legend. With drawings by Caribé. New York, Grossman Publishers, 1970.
MONTELLO, Josué. Os tambores de São Luís - Romance. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. José Olímpio, 1976. (Orig. 1975).
MOTT, Luiz. A inquisição no Maranhão. São Luís: EDUFMA, 1995.
NICOLAU PARÉS, Luis. The Phenomenologie of spirit possessionin teh tambor de mina (An etnographic-visual sutudy). London: University of London, SOAS, PhD thesis. 1997.
PEREIRA, Nunes. A Casa das Minas: culto dos voduns jeje no Maranhão. 2ª Ed. Petrópolis, Vozes, 1979. (Original, 1947).
PRAZERES, Frei Francisco de N. Sra. dos. Poranduba Maranhese. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: 1891, T. LIV, Parte I, p. 4-282, (Original, 1818).
RIBEIRO, Emanuela Sousa. Requerimentos de Licenças para Festas na Secretaria de Polícia de São Luís (1873-1933). Relatório Semestral de bolsistas de Iniciação Científica, da Pesquisa: Religião e Cultura Popular - Estudo de Festas no Maranhão e em Terreiros de Tambor de Mina. São Luís, UFMA, 1998.
RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Comp. Ed. Nacional, 1977 (Original 1905).
VERGER, Pierre. Uma rainha africana em São Luís. REVISTA USP n. 6. São Paulo: 1990: 151-158. (Original 1952).
________. 50 Anos de Fotografia. Salvador: Currupio, 1982.

Acesse a página original aqui http://cmfolclore.sites.uol.com.br/importanciaminas.htm

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Marian Anderson canta "Casta Diva" da ópera "Norma", de Bellini

Os perigos de uma crítica maniqueísta - Kabengele Munanga

TENDÊNCIAS/DEBATES (Folha de São Paulo, 26 de março de 2010)

Os perigos de uma crítica maniqueísta


KABENGELE MUNANGA


POR QUAL motivo o STF promoveria uma audiência pública antes de votar matéria de sua competência, como se seus ministros não tivessem já opinião construída sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalida de das cotas "raciais"? Penso que o Supremo teria partido do suposto de que as leis sozinhas não resolvem todos os problemas de uma sociedade e que era preciso reunir opiniões e pontos de vista provindos de diferentes setores.
É no âmbito dessa audiência pública que se coloca o pronunciamento do senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Os argumentos que defendeu provocaram reações, interpretações e comentários críticos que o geógrafo Demétrio Magnoli, em artigo neste espaço ("O jornalismo delinquente" , 9/3), qualificou como delinquência, amnésia ideológica, falsificação da história, manipulação, ignorância etc.
Conhece-se a facilidade sem limites que o geógrafo Demétrio Magnoli tem para atribuir palavras de sua conveniência a seus adversários. Mas o que disse exatamente o senador? Em seu pronunciamento, deixou claramente explícita sua posição contrária às cotas "raciais". Afirmou que não aconteceram sequestros e capturas de escravos porque foram os próprios africanos que o fizeram. Eles forneciam escravos não apenas aos mercados ocidentais e americanos, mas bem antes ao mundo árabe.
O senador disse ainda que os donos de escravos não eram somente brancos ou ocidentais, mas também africanos ou negros. Acrescentou à sua peça acusatória que os abusos sexuais cometidos contra as mulheres negras durante o regime escravista eram algo consentido. Ademais, criticou a categoria censitária que soma negros e mestiços numa única classificação e aproveitou para alfinetar os efeitos manipuladores das pesquisas quantitativas do IBGE e do Ipea. Chegou até a negar a existência no Brasil do racismo estrutural, reiterando a posição já antiga do racismo socioeconômico embutido no mito de democracia racial.
Na minha interpretação, o senador deixou claro que o Estado brasileiro não teria nenhuma obrigação de compensar os afrodescendentes por meio de políticas de ação afirmativa pelos crimes cuja responsabilidade cabe em parte aos próprios africanos que venderam seus "irmãos" mundo afora. Não surpreende que o senador tenha uma posição contrária.
No entanto, o conteúdo de seus argumentos, pela posição que ocupa, causou estranhamento e mal-estar político. Afirmar publicamente que a violência sexual contra a mulher negra durante o regime escravista era consentida é ignorar o contexto de assimetria e de subalternidade em que esses abusos eram cometidos. Afirmar que não aconteceram sequestros e capturas durante o tráfico negreiro é chocante para quem conhece um pouco dessa história. Todos os presentes à audiência pública, pelo menos os do campo oposto, ficaram horrorizados com as palavras do senador.
Os termos "negro", "africano", "europeu" e "branco" remetem ao mesmo contexto, pois os traficantes africanos ou reinos africanos eram negros, e os traficantes europeus eram brancos. Não vejo nenhuma manipulação ao trocar um termo por outro, a não ser na visão deturpada de alguns.
Os fatos históricos não são de todo incorretos, mas o que importa é a condenação moral da escravidão, externa ou interna, independentemente da origem geográfica ou "racial" do traficante. Ninguém inocentaria a Alemanha nazista pelo fato de o Holocausto ter contado com colaboradores europeus e traidores judeus.
Seria bom reafirmar que nenhum historiador negaria a participação de alguns reinos africanos no tráfico negreiro. Mas isto é certo: nenhum navio negreiro era propriedade dos africanos e nenhum traficante africano atravessou mares e oceanos para vender seus "irmãos" no exterior. Ao dizer isso em outros termos, o professor Luiz Felipe de Alencastro não está tendo nenhuma amnésia ideológica, como o sugere o geógrafo Demétrio Magnoli.
A demanda social das políticas de ação afirmativa não se fundamenta nesse passado escravista evocado pelo senador. Não se baseia na lógica da reparação coletiva em comparação com à que foi concedida ao Estado de Israel e aos israelitas vítimas das vexações nazistas.
Ela se fundamenta, do meu ponto de vista, sobretudo na situação estrutural das relações entre brancos e afrodescendentes que, segundo estatísticas de IBGE e Ipea, apresenta um tão profundo abismo acumulado em matéria de educação que jamais poderá ser reduzido apenas pelas políticas macrossociais ou universalistas.

KABENGELE MUNANGA, antropólogo, é professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor, entre outras obras, de "Origens Africanas do Brasil Contemporâneo: Histórias, Línguas, Culturas e Civilizações" e "Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil. Identidade Nacional versus Identidade Negra".
 

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Palestra da Presidente da Libéria

Única mulher a ocupar o posto de chefe de Estado na África, a presidenta da Libéria, Ellen Johnson-Sirleaf, realiza, na quinta-feira (8), às 16h, no auditório do Museu de Ciência e Tecnologia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), no Imbuí, uma palestra sobre Brasil, Libéria e a Diáspora Africana.
O evento, aberto ao público, é organizado pelo Governo da Bahia, por meio da Secretaria de Promoção da Igualdade (Sepromi), em parceria com a Uneb. A atividade faz parte de uma ampla agenda da autoridade liberiana no Brasil, com a perspectiva de reforçar operações que visam a aproximação do país com o continente africano.
Na Bahia, a presidenta busca o estabelecimento de cooperações em áreas como a cultural e a agrícola, além do estreitamento das relações diplomáticas com o Estado, que concentra o maior contingente de pessoas negras no Brasil.
Eleita em janeiro de 2006, Johson-Sirleaf é a líder maior do país africano que inspirou o documentário “Manda o Diabo de Volta para o Inferno” (Pray the Devil Back to Hell, 2008), que credita às mulheres da Libéria todo o fim da sangrenta guerra civil daquele país.