sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Obama desarma racistas brasileiros

Presença de Barack Obama na presidência dos EUA tem efeito pedagógico "extraordinário", afirma Hédio Silva Jr.

Diego Salmen

Militante notório do movimento negro, o advogado e professor Hédio Silva Jr. comenta, nesta conversa com Terra Magazine, a posse de Barack Obama na presidência dos Estados Unidos. Para ele, a presença de Obama no cargo tem um efeito pedagógico "extraordinário".

- Com Obama, nós podemos, neste plano tão importante que é o simbólico, educar a humanidade para que aprenda definitivamente que os negros, como qualquer outro agrupamento humano, são capazes e criativos.

Ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, Silva Jr. aponta outro benefício ao se ter um negro no comando da maior potência econômica e militar do planeta: a desarticulação de argumentos racistas no Brasil. Explica:

- Os americanos são tão racistas, conseguem eleger um presidente negro; aqui, onde não há racismo, não se elege um prefeito - ironiza. - Desse ponto de vista, tem um impacto real na luta contra o racismo no Brasil.

Confira a seguir a entrevista com Hédio Silva Jr.:

Terra Magazine - Qual o impacto da eleição de Obama para o movimento negro como um todo?
Hédio Silva Jr. -
É um impacto extraordinário, não só em termos da diáspora africana e da população negra, mas também dos diferentes grupos que são vítimas de discriminação. As democracias contemporâneas foram incapazes de preparar as pessoas para valorizar a diversidade. Veja que no dia 11 de fevereiro de 2001 encerrou-se a última conferência da ONU contra o racismo. E a conferência perdeu importância, obviamente, por conta dos atentados ao World Trade Center. Agora, passados oito anos, o mundo volta os olhos para o aparentemente interminável conflito árabe-israelense. Então um dos grandes problemas da humanidade neste século 21, que começou no 11/9, é a questão da diversidade. O Obama representa essas novas identidades políticas. É só ver as preocupações, na posse, com homossexuais, com grupos religiosos… É um alento o fato de que uma pessoa que encarna a diversidade seja a grande esperança do mundo no século 21.

Então nesse sentido a eleição de Obama transcende essa questão da raça…
Transcende no sentido de que, como negro, como vítima de discriminação, ele está perfeitamente preparado para captar o impacto que isso tem na vida das pessoas e dos outros. Está muito nítido agora na posse e estará presente na forma como ele vai tocar o governo.

A eleição dele é um sinal de fim do racismo nos Estados Unidos ou ainda estamos longe disso?
É um passo importante contra o racismo, é uma vitória significativa dessa luta, mas em absoluto significa o fim do racismo. São Paulo já teve um prefeito negro e isso não alterou em absolutamente nada as condições raciais e a intolerância. Eu não creio (que seja o fim do racismo), mas que é um passo significativo, sem dúvida.

Obama evitou fazer uma campanha calcada em questões raciais. Justamente por isso, o senhor acha que ele dará atenção especial a essa questão da negritude?
O problema do racismo é uma questão nacional nos Estados Unidos, e é um dos problemas - como outros graves que ele terá de enfrentar. Agora, a questão do racismo tem merecido por parte dos diferentes governos, desde Kennedy, medidas ousadas. E não é um problema que se resolve por decreto ou em uma gestão. Eu não tenho nenhuma dúvida de que ele vai dar prosseguimento a essas políticas, do ponto de vista da legislação, do governo norte-americano e por parte dos incentivos do setor privado, que existiam muito antes da posse dele, e vão continuar existindo depois que ele sair do governo.

O presidente Lula disse que gostaria de conversar com Obama antes "que o aparato do Estado" da Casa Branca o transformasse. O senhor acha que Obama irá se transformar?
Eu não temo isso, não, se você considerar os dados preparatórios da posse, o discurso que ele fez no memorial Lincoln, a presença de figuras negras de ponta como oradores nas cerimônias de posse e o fato dele indicar o Martin Luther King como um de seus dois grandes símbolos. Certamente que o presidente de uma nação como os Estados Unidos não tem como fazer que prevaleçam pontos de vista pessoais e paixões acima dos interesses da nação. Mas que ele irá passar por cima da história dele por conta do poder… Eu não tenho nenhuma dúvida de que ele não fará isso. Quem lê os livros dele com atenção, quem viu o discurso da vitória e quem está acompanhando a posse sabe muito bem que o homem negro que prega a crítica ao racismo, que prega a tolerância e a diversidade, é esse o homem que vai estar na Casa Branca.

E se Obama decepcionar durante sua presidência?
Eu creio que não. Do ponto de vista simbólico, qualquer que seja o desfecho…. Eu não tenho nenhuma dúvida que ele enfrentará com grandeza essa crise e mostrará a vocação que a África tem para produzir estadistas, como foi Nelson Mandela. Ele vai ser um estadista e vai retomar a trilha do desenvolvimento interno. Agora, mesmo que haja frustração, no plano simbólico a presença dele lá tem um significado muito forte; eu tenho certeza que as lideranças políticas do movimento contra o racismo compreenderão que não é porque se tem um negro no poder que será possível atender a todas as demandas (do movimento negro). Mas, obviamente, não é a panacéia, não é a solução.

De que maneira o movimento negro no Brasil encarou a eleição de Obama?

O Brasil está preparado para eleger um presidente negro?
Eu creio que sim. Nós já temos nosso Obama brasileiro, que certamente já nasceu e está cimentando um futuro para isso. Eu sou otimista em relação ao Brasil.

Foi uma surpresa positiva. Primeiro porque parte dos racistas brasileiros, que sempre utilizavam os EUA como muleta para dizer que lá, sim, era um exemplo de racismo e aqui não, perderam esse argumento. Os americanos são tão racistas, conseguem eleger um presidente negro; aqui, onde não há racismo, não se elege um prefeito. Desse ponto de vista, tem um impacto real na luta contra o racismo no Brasil. Depois, o fato de que a história contemporânea conhece poucos estadistas; um dos maiores do século 20 foi o presidente Mandela. E agora, com Obama, nós podemos, neste plano tão importante que é o simbólico, educar a humanidade para que aprenda definitivamente que os negros, como qualquer outro agrupamento humano, são capazes e criativos. Tem um efeito pedagógico extraordinário

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Parabéns, Presidente Barack Hussein Obama!


O retrato oficial do 44o Presidente dos Estados Unidos

Obama foi confundido com manobrista e seguido por seguranças


da Folha Online

A plena realização do sonho de Martin Luther King de viver em um país onde as pessoas são julgadas pelo caráter e não pela cor da pele ainda não aconteceu. Quem afirma é Barack Obama, que assume a presidência dos Estados Unidos no próximo dia 20.

"Sou capaz de relatar a ladainha usual de pequenos insultos que me foram direcionados: seguranças me seguindo quando entro em lojas de departamento, casais brancos que me jogam a chave de seus carros quando estou parado fora do restaurante esperando pelo valet, carros de polícia que me param por nenhuma razão aparente", diz Obama.

O "desabafo" do futuro presidente dos EUA está no livro "Audácia da Esperança - Reflexões Sobre a Reconquista do Sonho Americano" (Larousse, 2007), ensaio autobiográfico no qual Barack Obama fala sobre as tensões raciais nos EUA, sua vida e apresenta suas idéias para o país. No livro, ele também discute Bush e seu governo, a intervenção norte-americana no Iraque, o terrorismo islâmico e outros temas americanos.

No trecho do livro que pode ser lido abaixo, Obama usa exemplos de sua vida pessoal e indicadores sociais para comprovar seu argumento de que o racismo ainda não foi superado nos EUA.

Leia o texto de Obama e veja também outros livros sobre os Estados Unidos

*

Quando sou apresentado às pessoas, elas às vezes citam um trecho do discurso que fiz na Convenção Nacional Democrata de 2004 que pareceu causar comoção: "Não existem os Estados Unidos dos negros, os Estados Unidos dos brancos, os Estados Unidos dos descendentes de latinos ou os Estados Unidos dos descendentes de asiáticos - existem apenas os Estados Unidos da América". Para eles, essa idéia reflete uma visão dos Estados Unidos finalmente livres do passado de Jim Crow e da escravidão, dos campos de concentração japoneses e dos bóias-frias mexicanos, das tensões trabalhistas e dos conflitos culturais - um país que concretiza o desejo de Martin Luther King de não sermos julgados pela cor de nossa pele, mas pelo nosso caráter.

Divulgação

De certa forma, não tenho outra escolha a não ser acreditar nessa visão dos Estados Unidos. Como filho de negro com branca, nascido na "mistura de raças" do Havaí - e com uma irmã meio indonésia (que é normalmente confundida com mexicana ou porto-riquenha), um cunhado e uma sobrinha de ascendência chinesa, alguns parentes consanguíneos que parecem a Margaret Thatcher e outros que poderiam se fazer passar pelo Bernie Mac, de maneira que as reuniões familiares no Natal parecem uma reunião da Assembléia-Geral da ONU -, nunca tive como restringir minha lealdade com base na raça, ou medir meu valor baseado na minha tribo.

Além disso, acredito que parte da genialidade dos Estados Unidos deva-se à sua capacidade de incorporar os recém-chegados e construir uma identidade nacional com base nos diferentes povos que chegaram às nossas terras. Nisso recebemos a ajuda de uma Constituição que, apesar de ter sido estragada pelo pecado original da escravidão, tem em seu bojo a idéia de igualdade perante a lei; também contamos com a ajuda de um sistema econômico que, mais do que qualquer outro, ofereceu oportunidades a todos que tivessem potencial, sem considerar status, título ou classe social. É claro, os sentimentos de racismo e xenofobia têm minado repetidamente esses ideais; os poderosos e privilegiados têm muitas vezes explorado o preconceito para facilitar o favorecimento próprio. Mas, nas mãos dos reformistas, de Tubman a Douglass, Chavez e King, esses ideais de igualdade aos poucos moldaram a maneira como enxergamos a nós mesmos e possibilitaram o surgimento de uma nação cujo multiculturalismo assumiu uma forma única, diferente da de qualquer outro país.

Por fim, essas linhas em meu discurso descrevem a realidade demográfica dos Estados Unidos do futuro. Atualmente, no Texas, na Califórnia, no Novo México, no Havaí e no Distrito de Colúmbia, a maioria é hoje minoria. Mais de um terço da população de outros doze estados é composto de latino-americanos, negros e/ou asiáticos. Os latino-americanos já chegam a 42 milhões no país e são o grupo demográfico que mais cresce, respondendo por quase metade do crescimento populacional da nação entre 2004 e 2005; a população de origem asiática, embora bem menor, passou por um aumento similar e espera-se que cresça mais de 200% nos próximos 45 anos. Pouco depois de 2050, segundo projeções de especialistas, os Estados Unidos não serão mais um país de maioria branca. As conseqüências que isso trará para nossa economia, nossa política e nossa cultura ainda são impossíveis de prever com exatidão.

Mesmo assim, quando ouço os comentaristas dizendo que meu discurso é sinal de que chegamos à "política pós-racial" ou de que já vivemos em uma sociedade sem discriminação racial, preciso fazer uma ressalva. Dizer que todos formamos um só povo não é sugerir que nele as questões de raça foram superadas; nem que a luta pela igualdade foi vencida, ou que os problemas hoje enfrentados pelas minorias neste país são em grande parte causados por elas mesmas. Conhecemos as estatísticas: em quase todo indicador socioeconômico, da mortalidade infantil à expectativa de vida, da taxa de emprego à moradia própria, os negros e os latino-americanos continuam bem atrás dos brancos. Nos altos cargos executivos de todos os Estados Unidos, as minorias não estão representadas; no Senado, há apenas três membros latinos e dois asiáticos (ambos do Havaí); e ao escrever isso hoje, sou o único afroamericano no recinto. Sugerir que nossa atitude em relação a raça não tem um papel importante nessas disparidades é fechar os olhos para nossa história e experiência - e uma tentativa de nos livrar da responsabilidade de consertar a situação.

Além disso, embora minha própria criação dificilmente seja um exemplo típico da experiência afro-americana - e embora, por sorte e circunstância, eu hoje ocupe uma posição que me separa da maioria dos solavancos e contusões que o negro comum precisa enfrentar -, sou capaz de relatar a ladainha usual de pequenos insultos que me foram direcionados ao longo de meus 45 anos: seguranças me seguindo quando entro em lojas de departamento, casais brancos que me jogam a chave de seus carros quando estou parado fora do restaurante esperando pelo valet, carros de polícia que me param por nenhuma razão aparente. Sei como é ouvir gente dizer que não posso fazer algo por causa da minha cor, e conheço o gosto amargo da raiva ao engoli-la a seco. Também sei que eu e Michelle devemos estar sempre atentos em relação a algumas das histórias prejudiciais que nossas filhas poderão absorver - da televisão, de músicas, dos amigos e das ruas - sobre quem o mundo acha que elas são, e sobre o que o mundo imagina que deveriam ser.

Pensar a questão da raça de forma clara, portanto, exige que vejamos o mundo em uma tela dividida - para, enquanto olhamos sinceramente para a situação atual do país, termos em mente que tipo de nação queremos, a fim de reconhecer os pecados de nosso passado e os desafios do presente sem ficarmos presos ao cinismo ou desespero. Testemunhei uma profunda mudança nas relações raciais ao longo de minha vida. Fui capaz de senti-la com tanta clareza como alguém sente uma mudança de temperatura. Quando ouço algumas pessoas da comunidade negra negarem essas mudanças, penso que isso não apenas desonra os que lutaram pelo nosso interesse, mas também nos impede de completar o trabalho que eles começaram. Porém, por mais que insista em que as coisas melhoraram, também sei que na verdade melhorar não é o bastante.

"Audácia da Esperança - Reflexões Sobre a Reconquista do Sonho Americano"
Autor: Barack Obama
Editora: Larousse
Páginas: 400
Quanto: R$ 49,90
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Máscaras de Obama são hit no Rio


Máscaras do presidente eleito dos EUA, Barack Obama, são produzidas numa fábrica em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio. (Silvia Isquierdo/AP)

Máscaras do presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, prometem ser o hit do carnaval do Rio. Pelo menos na Saara (Sociedade de Amigos e Adjacências da Rua da Alfândega), principal pólo de comércio popular no Centro da cidade, elas vêm atraindo a preferência da clientela.

Apesar de as máscaras do presidente Luiz Inácio Lula da Silva serem exibidas na maior parte das prateleiras, quando o rosto de plástico de Obama entra na disputa, acaba vendendo mais. É o que ocorre nas casas Turuna, uma das mais tradicionais do Centro do Rio, onde cada uma sai a R$ 4,90. Até o prefeito do Rio, Eduardo Paes, ganhou um modelo.

Daniella Clark
Obama, Lula e Eduardo Paes lado a lado numa prateleira do Centro do Rio: cada uma é vendida a R$ 4,90. (Foto: Daniella Clark/G1)

Não muito longe dali, no Armarinho Delmar, é o ex-prefeito Cesar Maia que segue, firme e forte, na prateleira, ao lado não só de Lula, como de Yasser Arafat, líder palestino que morreu em 2004. Ali, cada unidade sai por R$ 1,50.

As máscaras de Obama são produzidas numa fábrica em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio. Olga Valles, viúva do artista plástico Armando Valles – que morreu em julho de 2007 – diz que o marido começou a pensar nas máscaras para o carnaval de 2009 pouco antes de adoecer e morrer. Na época, Obama ainda disputava com Hillary Clinton a indicação para a candidatura à presidência dos Estados Unidos.

A idéia foi levada adiante pelo escultor espanhol Sérgio Arbusa, de 22 anos. Amigo dos filhos de Olga, que estão morando na Espanha, Arbusa veio visitar o Brasil e passou três meses trabalhando na fábrica da família Valles, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio.

Daniella Clark
Lula, mais barbudo, ao lado das máscaras de Yasser Arafat e do ex-prefeito do Rio Cesar Maia: cada uma sai a R$ 1,50. (Daniella Clark/G1)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Estado é ausente no caso do problema racial, mostra livro

Enfrentamento do racismo, preconceito e discriminação exige necessariamente a intervenção do Estado. Segundo organizador de obra lançada pelo Ipea, porém, obstáculos permanecem e políticas públicas específicas são escassas
Por Repórter Brasil

O livro "Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas 120 anos após a abolição", lançado nesta quinta-feira (20) - Dia da Consciência Negra - pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), demonstra "que a construção da questão racial como campo de intervenção política, no Brasil, ainda está por ser concluída".

"As chamadas políticas públicas, mediante as quais o Estado se faz presente, consolidando direitos, desfazendo iniqüidades, fortalecendo a coesão social e mesmo obstruindo ciclos viciosos de reprodução de desigualdades, parecem ainda ausentes no caso do problema racial. De uma forma trágica e até emblemática, face a esse problema, onde as políticas públicas mais se fazem necessárias, é lá que o Estado se omite e essas políticas escasseiam", afirma o organizador Mário Theodoro, no capítulo conclusivo da obra. O livro conta ainda com artigos de Luciana Jaccoud (O combate ao racismo e à desigualdade racial: o desafio das políticas públicas de promoção da igualdade racial), Rafael Osório (Desigualdade racial e mobilidade social no Brasil: um balanço das teorias) e Sergei Soares (As desigualdades raciais no Brasil – a trajetória a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios-Pnad) .

Essa ausência do Estado, na opinião do organizador, não se deve à falta de percepção da importância da temática ou inexistência de sensibilidade para a questão, mas justamente ao oposto. O reconhecimento da "grandiosidade e centralidade" da questão, segundo ele, ajuda a entender a paralisia do Estado e da própria sociedade brasileira marcada por "largos setores" que "ainda resistem a enfrentar o problema".
"O Estado tergiversa, afirmando a existência da desigualdade racial, ao mesmo tempo em que não prioriza programas e ações nesse domínio. Além disso, uma parcela da sociedade insiste em não identificar essa temática como um problema, e a parte que o faz, mantém-se dividida entre aqueles que advogam pela necessidade da ação do Estado e o reconhecimento da questão racial, e os que, de outro lado, postulam, ao que se entende, equivocadamente, a suficiência da perspectiva universalista e do tratamento igualitário para o enfrentamento das desigualdades e para a própria estabilidade da democracia", continua o responsável pela organização da nova obra.

Para ele, quatro obstáculos principais dificultam a implementação da agenda política de enfrentamento das desigualdades raciais no Brasil, quais sejam: o caráter residual das políticas públicas, a ausência de uma base conceitual para a formulação das políticas e programas, a mescla entre a questão racial e pobreza no desenho das políticas públicas, e o racismo institucional.

O caráter residual das políticas públicas
Em 2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção das Igualdade Racial (Seppir), com status de ministério e ligada à Presidência da República. Nesse período, o Plano Plurianual (PPA) 2004-2007 estabeleceu como um dos 31 desafios do governo "promover a redução das desigualdades raciais, com ênfase na valorização cultural das etnias".

O programa Brasil Quilombola, iniciativa mais relevante do governo no campo da política de promoção da igualdade racial, sofreu, logo em 2005, o maior corte de recursos entre os 92 programas sociais definidos no PPA. Apenas 34,4% do total de recursos inicialmente autorizados foram empenhados. A média geral de empenho do conjunto dos programas se manteve em 97,3%.


A ausência de uma base conceitual para a formulação de políticas
No Brasil, a Constituição Federal confere à prática do racismo, ou seja, à discriminação racial, o estatuto de crime imprescritível e inafiançável. "Apesar de regulamentada por um conjunto de leis, raras são as ocasiões em que se pode assistir à aplicação de tal legislação pelo Poder Judiciário", completa o pesquisador, sem deixar de citar pesquisa recente realizada na cidade de Recife (PE) que demonstra que, entre os anos de 1998 e 2005, houve apenas uma única condenação efetiva por crime de racismo. O argumento de que se trata de crime de perjúrio, recorrentemente aceito pelos juízes e que desqualifica a prática de racismo, tem livrado a maioria dos acusados.

"Isso demonstra que, apesar da existência do arcabouço legal, a sociedade brasileira - aí incluídos os poderes constituídos - ainda permanece refém de uma ideologia que não apenas desvaloriza o negro, mas que, naturalizando sua posição de inferioridade, faz com que as desigualdades raciais sejam facilmente reproduzidas nas diversas esferas da vida social", adiciona Mário. "O combate à problemática racial não será efetivo se não lograr uma mudança da mentalidade ainda largamente implantada em nosso país. Sem a efetiva importância da igualdade como valor, o reconhecimento da diversidade na formação nacional, e a condenação de racismos e preconceitos, nem a legislação em vigor será aplicada em sua plenitude, nem as políticas e ações de promoção da igualdade racial poderão ter o sucesso que delas se espera".

A mescla entre a questão racial e pobreza no desenho das políticas
"É fato que a maioria dos pobres é negra. Essa condição é, ao mesmo tempo, causa e conseqüência, no bojo de um processo que se auto-alimenta contínua e progressivamente. Mas a visão da pobreza associada ao negro, sempre eivada pela visão racista que atribui a este parte expressiva da responsabilidade de sua situação de carência, seja por acomodação, seja por falta de qualidades que seriam inerentes ao processo de mobilidade ascendente, acaba por naturalizar a própria pobreza. Nesse contexto, o estigma atua reforçando uma ciranda perversa na qual a existência da pobreza surge como parte constitutiva e natural de nossa realidade, especialmente quando sua cor é negra", argumenta o organizador da obra lançada pelo Ipea.

É essa confusão que aparece com destaque no debate sobre as cotas nas universidades. "Sem levar em conta que se trata de uma política de combate à discriminação racial e, em última análise ao preconceito e ao racismo, alguns discursos, muitas vezes de forma até bem intencionada, buscando um intangível consenso, advogam pelas chamadas cotas para pobres. Assim, mais uma vez, é negado o mecanismo da discriminação e recusado o tratamento preferencial aos negros", critica o pesquisador. Ele lembra que programas de cotas nas universidades não estão propriamente direcionados para os mais pobres que, em sua grande maioria, sequer concluíram o ensino fundamental e, na idade em que deveriam estar cursando o ensino superior, já estão participando do mercado de trabalho, muitas vezes em ocupações marcadas pela informalidade.

"As cotas vêm possibilitar o acesso àqueles que atingiram um dado grau de educação formal, promovendo a ampliação das oportunidades para esse grupo social. A cota tem o objetivo de abrir o teto social que hoje impede uma maior progressão social do jovem negro, visando alçá-lo a uma condição de ascensão social. Essa política tem impactos na composição de um novo perfil da elite brasileira, que passará a ser marcada por uma maior diversidade e pluralidade. Nesse sentido, ela ajuda a promover maior eqüidade racial, desnaturalizando o preconceito e valorizando a presença negra nos diversos espaços e posições sociais", continua o autor.

A pobreza, explica, deve ser enfrentada com um conjunto amplo de políticas universalistas, tendo como pano de fundo o crescimento econômico e a distribuição mais equânime da riqueza. Racismo, preconceito e discriminação, por sua vez, devem ser enfrentados com outro conjunto de políticas e ações. "Conjunto esse que, infelizmente, ainda está por se consolidar", comenta.

O racismo institucional
O racismo institucional e seus desdobramentos explicam, em larga medida, as diferenças de acesso entre grupos brancos e negros a determinadas políticas e recursos, bem como as dificuldades de se reconhecer a necessidade de consolidar políticas públicas específicas de combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação racial.

Mário conclui: "Dessa forma, e em que pese a relevância do tema racial como elemento central na dinâmica da produção e da reprodução da pobreza e da desigualdade no Brasil, as dificuldades representadas pelo racismo institucional têm representado efetivos obstáculos ao enfrentamento da desigualdade e da discriminação racial na agenda de políticas públicas".

Sacatar Convida : MODOS DE VER com Adenor Gondim

sábado, 10 de janeiro de 2009

Música está de luto com a morte de Edith do Prato

VÍDEOS


09/01/2009 às 18:20
SAMBA DE RODA

Percussionista era única no instrumento que escolheu: o prato e a faca

Duração: 01:38

Ver página original

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Seis anos da Lei 10.639/03

Caros colegas! Faltam dois dias para que a Lei 10.639/03 complete 6 anos. Seis anos colegas, e precisamos parar e refletirmos nas ações que foram realizadas até agora e qual foi o nosso papel nesse contexto.

Fizemos realmente o nosso papel, ou poderíamos ter feito mais! As ações que realizamos surtiram o efeito esperado ou devemos nos esforçar um pouco mais em 2009.

A quem cabe o papel de institucionalizar a lei? Esta pergunta ainda está sem resposta.

Eu particularmente, apesar de sentir que fiz o que estava ao meu alcance, penso que foi muito pouco ainda, uma vez que, as ações não frutificaram como esperava e já começo o ano com o planejamento de ações para 2009 e gostaria muito de poder contar com sugestões e contribuições dos colegas de outros estados, que sabemos que tem trabalhado e muito.

Compartilho com vcs mais uma pequena vitória, mas que somadas umas as outras esperamos que se torne grande, me filiei ao MUNDI Movimento Unificado Negro de Divinópolis e teremos hoje no dia 7 de Janeiro, a instalação da Comissão de Educação dentro do movimento, será composta por nove membros titulares e suplentes e terá entre outros objetivos o principal que será acompanhar nas escolas de Divinópolis e Região a implementação da Lei 10.639/03 e dar suporte as mesmas no Modo de Ver, de Sentir e principalmente no modo de Agir com relação a lei. As escolas de todo país estão de férias e eu também, mas não podemos cruzar os braços, porque o tempo urge e mesmo comemorando os seis anos da lei, temos ainda muito trabalho pela frente.

Abraços e saudações a todos
Maria Cristina dos Santos CEFET-MG/Divinópolis

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Resenha: A Formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia


Há livros que desde muito desejávamos ver escritos. Como este, de Luis Nicolau Parés, A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia.

Do que vamos sabendo sobre o tráfico negreiro na Bahia e sobre as suas populações escravas, podemos depreender que, no decorrer do século XVIII, entre um terço e metade dos africanos de Salvador e do Recôncavo Baiano seriam jejes, denominação que englobava fons, guns, hulas, huedás, popôs, evés, aízos, agonlis, mahis, savalus e outros povos de idioma gbe. Apesar disso e da importância que inevitavelmente teriam tido na construção dos valores e costumes baianos, os jejes ficaram à sombra dos estudos iorubanos. Estes foram de tal modo predominantes, que acabaram por empalidecer até mesmo a presença, em todos os planos da vida social baiana, dos ambundos, congos, pendes, quissamas, iacas, angicos, libolos e outros povos de falas bantas de Angola e dos Congos, que não deixaram, durante três séculos, de desembarcar em grandes quantidades na Bahia.

Este livro de Luis Nicolau Parés nos intima a repintar o quadro. Fruto de demoradas leituras, de pesquisas no Maranhão, na Bahia e na República de Benim e de um convívio de muitos anos com as comunidades veneradoras dos voduns, ele desenrola diante de nós, sempre com clareza e algumas vezes com minúcia, uma história que há muito queríamos conhecer – a dos jejes na Bahia –, e a entrelaça, com saber e habilidade, à da própria formação do candomblé. Para Luis Nicolau – e estas são duas das novidades dessa obra –, os cultores dos voduns, que falavam gbe, seriam responsáveis pela organização dos candomblés numa estrutura eclesial ou conventual, e teriam trazido da África o culto sucessivo de várias divindades no mesmo templo, o que não se conhece entre os iorubás no outro lado do Atlântico e tem sido interpretado como uma criação brasileira, resultante das condições sociais determinadas pelo regime escravista, sobretudo no âmbito urbano e em Salvador.

Confrontando e somando as tradições orais e as fontes escritas, Luis Nicolau narra e compara as histórias de dois santuários jejes, ambos surgidos na segunda metade do século XIX, e que se têm por mahis: um em Salvador, o Bogum; o outro em Cachoeira, a Roça de Cima, da qual saiu o Seja Undé. Escava o passado em busca de terreiros mais antigos e se detém, procurando, sempre que possível, mais do que esboçar suas biografias, sobre as mulheres e os homens que conduziram esses centros religiosos e foram transmissores de cultura e agentes de mudança. Desenha retratos inesquecíveis de alguns deles. E com eles caminha até o presente, para nos descrever o panteão dos voduns e os rituais jejes e identificar as mudanças que neles se processaram, ao longo do tempo, no Brasil e na África.

Em A formação do candomblé, o historiador jamais se despede do antropólogo, nem este do historiador. No livro, passa-se de uma das margens para a outra quase imperceptivelmente. Porque, bem pensado, é bem escrito. Bem escrito como deveriam ser todos os livros. Daí que suas páginas sejam lidas não só com interesse, mas também com encantamento.

Forçoso é registrar um pecado da editora: o livro não possui índice remissivo, que me parece indispensável numa obra importante como esta.

Por Alberto da Costa e Silva, historiador e embaixador.

www.editora.unicamp.br

Ver artigo original na Revista de História da Biblioteca Nacional

domingo, 4 de janeiro de 2009

Reproduzindo preconceitos seculares - nas apostilas para o vestibular e concursos

Encontramos este texto, reproduzido sem qualquer questionamento (mas talvez com o intuito de "instruir"?) no "Portal dos Concursos - Apostilas Portal dos Concursos" - "Processo Celetivo [sic] Simplificado da Secretaria Municiapl de Saúde - Prefeitura Municipal de Salvador - Cargo de Assistente Administrativo (Salvador: Editora Portal de Concursos, 2008), p. 22-23, e online, no link embaixo. Quem já leu ou ainda lê o excelente livro de João José Reis - Domingos Sodré, Um Sacerdote Africano (Companhia das Letras, 2008) - entenderá que, a mais de um século, os jornais brasileiros vêem o Candomblé (e a cultura afro-brasileira em geral) como um fator de "atraso".

Fantasmas primitivos e superstições cibernéticas?

O Brasil é um país de contrastes.
Enquanto diplomatas do Itamaraty pretendiam explicar aos americanos do Departamento de Estado como funciona a reserva de mercado para fabricantes brasileiros de equipamentos de informática, políticos ilustres - entre os quais um governador, um ministro de Estado,
um prefeito e dois candidatos ao governo de um grande Estado da Federação - reuniram-se num ato público impressionante: o enterro da Mãe Menininha do Gantois.
Mãe Menininha do Gantois era a mais famosa sacerdotisa de cultos espíritas de origem africana, no Brasil. Sua morte foi pranteada por compositores de rock, romancistas cotados para o Prêmio Nobel, artistas plásticos respeitados, cantores de música popular, boêmios notórios e notáveis do poder das repúblicas Nova e Velha.
Seu enterro parou a vida de uma das maiores cidades do Pais, Salvador, capital da Bahia,ao som dos atabaques e sob os olhares comovidos de milhares de pessoas que se enfileiraram nas calçadas das ruas do centro da cidade, por onde o cortejo passou.
Diante do cortejo imenso e da importância política que presenças ilustres deram ao ato, resta-nos raciocinar sobre o imenso esforço de educação que é necessário para que o Brasil se transforme numa nação moderna, em condições de competir com os maiores países do mundo.
A importância exagerada dada a uma sacerdotisa de cultos afro-brasileiros é a evidência mais chocante de que não basta ao Brasil ser catalogado como a oitava maior economia do mundo, se o País ainda está preso a hábitos culturais arraigadamente tribais.

Na era do chip, no tempo da desenfreada competição tecnológica, no momento em que a tecnologia desenvolvida pelo homem torna a competição de mercados uma guerra sem quartel pelas inteligências mais argutas e pelas competências mais especializadas, o Brasil, infelizmente, exibe a face tosca de limitações inatas, muito dificilmente corrigíveis por processos normais de educação a curto prazo.
Enquanto o mundo lá fora desperta para o futuro, continuamos aqui presos a conceitos culturais que datam de antes da existência da civilização. (O Estado de São Paulo - 17/08/86)

http://www.colegio24horas.com.br/ogloboeducacao2006/abrirpdfdc.asp?p=000Portugues&s=3&a=td0012_3g20_20060608000000.pdf

sábado, 3 de janeiro de 2009

Os Africanos no Brasil: Raça, Cientificismo e Ficção em Nina Rodrigues


Por JOSÉ APÓSTOLO NETTO

Historiador e doutorando em História (UNESP - Campus de Assis, SP)


INTRODUÇÃO

A idéia da fecunda interconexão entre História e Literatura tornou-se uma questão de ponta em alguns setores da historiografia institucional contemporânea. É o que vem ocorrendo, por exemplo, no interior da vertente interpretativa norte americana da Nova História Cultural. Com Hayden White e Dominique La Capra à frente, ela cumpre atualmente um papel de destaque nessa área de estudo. Em outros termos, surge como representante de um pequeno, mas significativo, movimento de aplicação e discussão teórico/metodológica da abordagem literária na história. E isto não por acaso. Nas suas fileiras existe uma nova geração de historiadores da cultura que faz uso quase inédito de técnicas e análises literárias para desenvolver novos materiais e métodos de pesquisa no campo da investigação histórica.

Como venho dedicando-me, há alguns anos, ao estudo da historicidade da arte e a dimensão artística da história, a partir da análise de alguns escritos de Monteiro Lobato e Gilberto Freyre – “O Saci”, “Negrinha” e “Casa Grande e Senzala”, respectivamente, no que diz respeito à questão do negro no Brasil, entendo que os pressupostos capitaneados pela Nova História Cultural são de grande serventia para o desenvolvimento de um trabalho dessa natureza.

Com vistas a trazer para solo cultural brasileiro a referida discussão e suas possíveis experimentações, pretendo neste artigo empreender uma análise crítica literária e historiográfica do livro “Os Africanos no Brasil” (1890-1905), de autoria do médico, etnólogo e professor da Faculdade de Medicina da Bahia Raimundo Nina Rodrigues (1862- 1906).

Tal empreendimento investigativo justifica-se, primeiro, porque Nina Rodrigues foi o primeiro estudioso brasileiro da virada do século XIX para o XX a colocar o problema do negro brasileiro enquanto um problema social, como uma questão de suma importância para a compreensão da formação racial da população brasileira; ainda que pese a perspectiva racista, nacionalista e cientificista que conforma a prática discursiva do autor.

Diz ele, no capítulo “Sobrevivências Religiosas, Religião, Mitologias e Culto”, sobre o tratamento dispensado pelas autoridades e pela imprensa baianas da época aos cultos de candomblé:

“Na África, estes cultos (jeje-nagô) constituem verdadeira religião de Estado, em cujo nome governam os régulos. Acham-se, pois, ali garantidos pelos governos e pelos costumes. No Brasil, na Bahia, são ao contrário consideradas práticas de feitiçarias, sem proteção nas leis, condenadas pela religião dominante e pelo desprezo, muitas vezes apenas aparentes, é verdade, das classes influentes que, apesar de tudo, as temem. Durante a escravidão, não há ainda vinte anos portanto, sofriam elas todas as violências por parte dos senhores de escravos, de todo prepotentes, entregues os negros, nas fazendas e plantações, à jurisdição arbítrio quase ilimitados de administradores, de feitores tão brutais e cureis quanto ignorante. Hoje, cessada a escravidão, passaram elas à prepotência e ao arbítrio da polícia não mais esclarecidas do que os antigos senhores e aos reclamos da opinião pública que, pretendendo fazer de espírito forte e culto, revela a toda hora a mais supina ignorância do fenômeno sociológico.

Não é menos para lamentar que a imprensa local revele, entre nós, a mesma desorientação no moda de tratar o assunto, pregando e propagando a crença de que o sabre do soldado de polícia boçal e a estúpida violência de comissários policiais igualmente ignorante hão de ter maior dose de virtude catequista, mais eficácia como instrumento de conversão religiosa do que teve o azorrague dos feitores”. (Rodrigues, 1977: 239)

Segundo, porque a sua obra, vista no conjunto, afigura-se como um clássico da literatura afro-brasileira. Ela é uma vasta e rica coletânea de informações e dados a respeito do universo cultural das comunidades negras no Brasil. Esforço etnográfico que nenhuma outra obra antes dela realizara.

Finalmente, porque a sua obra é considerada o resultado de um grande esforço intelectual de mais de uma década (1890-1905), no intuito de coligir e coletar registros e evidências (escritas e orais), no dizer do próprio autor, dos “últimos africanos no Brasil”. O que faz dela um ponto de referência bibliográfico obrigatório para todos os estudiosos da problemática do negro na sociedade brasileira.

Posto isto, convém dizer que a proposta aqui é empreender uma análise crítica literária e historiográfica do discurso racista de Nina Rodrigues em “Os Africanos no Brasil”; mapeando as condições de sua existência, para deste modo entendê-lo, não como revelador da história acontecimento (discurso que veicula uma verdade), e sim enquanto, ele mesmo, acontecimento histórico (discurso que é representação, construção).

Cabe dizer ainda que a presente desconstrução discursiva será operada por meio da crítica literária de cunho histórico/social e estruturalista, assentada na perspectiva da dialética forma/conteúdo que pretende ver o elemento externo (o extra-literário) como fator de criação , tornando-se assim elemento interno.

O contexto histórico, cultural, literário e institucional contribui, em grande parte, para a formação do pensamento do escritor e/ou do estudioso. Claro que não de forma mecânica e imediata, pois ele (o contexto) é tão múltiplo e diversificado – como também são múltiplas e diversas as interações que podemos estabelecer com o mesmo – que a estrutura mental do pensador acaba por ser constituída de inúmeras mediações psicogenéticas e sociogenéticas de difícil determinação espaço-temporal de causa e efeito.

Todavia, o contexto não deixa de ser, mesmo assim, um excelente critério de avaliação da forma mentis do escritor; e, no caso de Nina Rodrigues, ele torna mais compreensível a mentalidade racista, nacionalista e cientificista veiculada pela sua obra.

Ele, na condição de médico legista e professor de medicina legal na Universidade da Bahia, no fim do século XIX e começo do século XX, dificilmente escaparia ao engendramento de um pensamento deste tipo; pois, encontrava-se atuando – e por ele foi formado – dentro de um ambiente institucional, acadêmico e intelectual recortado, basicamente, pelas teorias e idéias racistas, nacionalistas, evolutivo positivistas, de sabor oitocentista. Darwin, Augusto Comte, Heckel, Cesari Lombroso, Enrico Ferri e R. Garofollo e Alexandre Lacassagne foram seus mestres, para os quais, numa atitude de discípulo zeloso, dedicou o volume de “As Raças Humanas e Responsabilidade Penal no Brasil”.

Visto assim, não fica difícil entender por que Nina Rodrigues assume, e comunica na sua obra, um discurso sobre o negro pautado no paradigma da determinação biológica e cultural da superioridade ariana, na medida em que ele recebe influências dos ideólogos e teóricos do mesmo.

Mas o interessante, após termos feito este pequeno mapeamento da natureza histórica e cultural do pensamento de Nina Rodrigues, é ver como ele encontra-se estruturado no livro “Os Africanos no Brasil”. Importando-nos, agora, apenas identificar o estilo do autor, que configura-se enquanto uma linguagem pretensamente “neutra”, “objetiva”, cientificista e de elaboração de enredo do modo trágico.¹

O estilo de Nina Rodrigues é denunciado pela própria organização formal de “Os Africanos no Brasil”. Ela traduz-se basicamente na forma de narrativas analíticas e descritivas, comunicadas por um narrador em terceira pessoa e onisciente, que está referenciado no passado (pretérito perfeito); representando literariamente assim o método de investigação científica positivista do século passado.

A técnica literária realista manipulada por Nina Rodrigues o deixa muito à vontade com a sua consciência científica para construir toda a teia discursiva de classificação e tipologização do universo do negro em “Os Africanos no Brasil”, visto que, respaldado por ela, no sentido de criar a ilusão de distanciamento científico, acredita e leva-nos, nós leitores, a acreditar que ele (o autor) esteja falando do seu objeto de estudo (no caso, o negro) apenas aquilo que lhe é intrínseco, sem interferências subjetivas.

Com efeito – e é aí que reside o perigo maior – o autor e o leitor não se dão conta, graças a alguns procedimentos lingüísticos e literários, do teor racista e, portanto, recortado, da rede discursiva de “Os Africanos no Brasil”, tomando-a como verdade. Ou seja, são levados a acreditar no enunciado básico do livro de que o negro é inferior, em todos os aspectos, em relação ao homem branco “civilizado”, devido as suas características “deficientes”, “patológicas” e “degenerativas”.

A técnica realista constitutiva e constituinte da narrativa de “Os Africanos no Brasil” funciona, por assim dizer, como um narcótico mental que impede o leitor de apreender a interferência da subjetividade do autor no momento narrativo no qual ele constrói um significado sobre o negro.

Ocorre, contudo, que Nina Rodrigues, o sujeito do discurso, esconde-se atrás do narrador onisciente (que tudo conhece) e, através dele, delega, por sua vez, voz ao negro, ocultando-se da narrativa, da qual temos a impressão de contar-se a si mesma. E estes expedientes formais, sem falarmos de que a matéria narrada no passado torna-se mais verídica, impedem, ou apenas dificultam, a nossa percepção de que esta voz do negro não passa senão de uma construção discursiva. Em outro termos, impede-nos de ver que a voz do negro é filtrada pela linguagem racista do autor, pela sua subjetividade.

Em termos de estrutura profunda e estrutura superficial, a análise crítica literária revela ainda como o texto “Os Africanos no Brasil” esconde, atrás de um suposto trabalho científico de caracterização do universo negro, um pernicioso processo de diferenciação racial entre brancos e negros. Processo de diferenciação baseado na inferioridade do segundo em relação ao primeiro.

Quando Nina Rodrigues, por exemplo, narra os cultos religiosos, os rituais, a magia afro-brasileira, é somente para demonstrar a incapacidade do negro assimilar a religião católica, pelo fato, segundo o autor, de ser desprovido do pensamento abstrato. Ou, quando refere-se à língua do negro, é para demonstrar a simplicidade da estrutura da mesma. E, finalmente, quando aborda a arte afro, é para concluir que ela é “rústica”, “deformada” e “primitiva”.

Com uma visão pessimista em relação à presença do negro na sociedade brasileira, Nina Rodrigues não poderia desenvolver textualmente o seu pensamento senão através de uma elaboração de enredo no modo trágico. O livro “Os Africanos no Brasil” tenta a todo momento mostrar os perigos que representa a influência direta ou indireta do negro na nossa cultura; bem como a descrença no florescimento da Nação brasileira fundada na miscigenação, sugerindo o branqueamento, via imigração européia, da população como fator de redenção nacional.

Concluindo, espero que tenha conseguido descrever o estilo literário e historiográfico de Nina Rodrigues no livro “Os Africanos no Brasil”. Estilo que, como foi apontado, pode ser descrito como cientificismo trágico.

Ao mapear as contribuições históricas e culturais na formação do pensamento racista do autor e, posteriormente, demonstrar como este foi transfigurado literariamente, detectando os recursos expressivos acionados, acredito ter colocado em operação a dialética estrutura conteúdo ou, como preferirem, texto/contexto.

Esse mapeamento serviu para mostrar o poder capturador e narcotizante do discurso racista de Nina Rodrigues, na medida em que o trabalho desmascarou os expedientes lingüísticos e literários de criação da idéia de neutralidade e objetividade analítica do mesmo, funcionando no sentido de construir uma “verdade” sobre o negro brasileiro.


Fonte: Revista Espaço Acadêmico 44, Janeiro de 2005