O livro "Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas 120 anos após a abolição", lançado nesta quinta-feira (20) - Dia da Consciência Negra - pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), demonstra "que a construção da questão racial como campo de intervenção política, no Brasil, ainda está por ser concluída".
"As chamadas políticas públicas, mediante as quais o Estado se faz presente, consolidando direitos, desfazendo iniqüidades, fortalecendo a coesão social e mesmo obstruindo ciclos viciosos de reprodução de desigualdades, parecem ainda ausentes no caso do problema racial. De uma forma trágica e até emblemática, face a esse problema, onde as políticas públicas mais se fazem necessárias, é lá que o Estado se omite e essas políticas escasseiam", afirma o organizador Mário Theodoro, no capítulo conclusivo da obra. O livro conta ainda com artigos de Luciana Jaccoud (O combate ao racismo e à desigualdade racial: o desafio das políticas públicas de promoção da igualdade racial), Rafael Osório (Desigualdade racial e mobilidade social no Brasil: um balanço das teorias) e Sergei Soares (As desigualdades raciais no Brasil – a trajetória a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios-Pnad) .
Essa ausência do Estado, na opinião do organizador, não se deve à falta de percepção da importância da temática ou inexistência de sensibilidade para a questão, mas justamente ao oposto. O reconhecimento da "grandiosidade e centralidade" da questão, segundo ele, ajuda a entender a paralisia do Estado e da própria sociedade brasileira marcada por "largos setores" que "ainda resistem a enfrentar o problema".
"O Estado tergiversa, afirmando a existência da desigualdade racial, ao mesmo tempo em que não prioriza programas e ações nesse domínio. Além disso, uma parcela da sociedade insiste em não identificar essa temática como um problema, e a parte que o faz, mantém-se dividida entre aqueles que advogam pela necessidade da ação do Estado e o reconhecimento da questão racial, e os que, de outro lado, postulam, ao que se entende, equivocadamente, a suficiência da perspectiva universalista e do tratamento igualitário para o enfrentamento das desigualdades e para a própria estabilidade da democracia", continua o responsável pela organização da nova obra.
Para ele, quatro obstáculos principais dificultam a implementação da agenda política de enfrentamento das desigualdades raciais no Brasil, quais sejam: o caráter residual das políticas públicas, a ausência de uma base conceitual para a formulação das políticas e programas, a mescla entre a questão racial e pobreza no desenho das políticas públicas, e o racismo institucional.
O caráter residual das políticas públicas
Em 2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção das Igualdade Racial (Seppir), com status de ministério e ligada à Presidência da República. Nesse período, o Plano Plurianual (PPA) 2004-2007 estabeleceu como um dos 31 desafios do governo "promover a redução das desigualdades raciais, com ênfase na valorização cultural das etnias".
O programa Brasil Quilombola, iniciativa mais relevante do governo no campo da política de promoção da igualdade racial, sofreu, logo em 2005, o maior corte de recursos entre os 92 programas sociais definidos no PPA. Apenas 34,4% do total de recursos inicialmente autorizados foram empenhados. A média geral de empenho do conjunto dos programas se manteve em 97,3%.
A ausência de uma base conceitual para a formulação de políticas
No Brasil, a Constituição Federal confere à prática do racismo, ou seja, à discriminação racial, o estatuto de crime imprescritível e inafiançável. "Apesar de regulamentada por um conjunto de leis, raras são as ocasiões em que se pode assistir à aplicação de tal legislação pelo Poder Judiciário", completa o pesquisador, sem deixar de citar pesquisa recente realizada na cidade de Recife (PE) que demonstra que, entre os anos de 1998 e 2005, houve apenas uma única condenação efetiva por crime de racismo. O argumento de que se trata de crime de perjúrio, recorrentemente aceito pelos juízes e que desqualifica a prática de racismo, tem livrado a maioria dos acusados.
"Isso demonstra que, apesar da existência do arcabouço legal, a sociedade brasileira - aí incluídos os poderes constituídos - ainda permanece refém de uma ideologia que não apenas desvaloriza o negro, mas que, naturalizando sua posição de inferioridade, faz com que as desigualdades raciais sejam facilmente reproduzidas nas diversas esferas da vida social", adiciona Mário. "O combate à problemática racial não será efetivo se não lograr uma mudança da mentalidade ainda largamente implantada em nosso país. Sem a efetiva importância da igualdade como valor, o reconhecimento da diversidade na formação nacional, e a condenação de racismos e preconceitos, nem a legislação em vigor será aplicada em sua plenitude, nem as políticas e ações de promoção da igualdade racial poderão ter o sucesso que delas se espera".
A mescla entre a questão racial e pobreza no desenho das políticas
"É fato que a maioria dos pobres é negra. Essa condição é, ao mesmo tempo, causa e conseqüência, no bojo de um processo que se auto-alimenta contínua e progressivamente. Mas a visão da pobreza associada ao negro, sempre eivada pela visão racista que atribui a este parte expressiva da responsabilidade de sua situação de carência, seja por acomodação, seja por falta de qualidades que seriam inerentes ao processo de mobilidade ascendente, acaba por naturalizar a própria pobreza. Nesse contexto, o estigma atua reforçando uma ciranda perversa na qual a existência da pobreza surge como parte constitutiva e natural de nossa realidade, especialmente quando sua cor é negra", argumenta o organizador da obra lançada pelo Ipea.
É essa confusão que aparece com destaque no debate sobre as cotas nas universidades. "Sem levar em conta que se trata de uma política de combate à discriminação racial e, em última análise ao preconceito e ao racismo, alguns discursos, muitas vezes de forma até bem intencionada, buscando um intangível consenso, advogam pelas chamadas cotas para pobres. Assim, mais uma vez, é negado o mecanismo da discriminação e recusado o tratamento preferencial aos negros", critica o pesquisador. Ele lembra que programas de cotas nas universidades não estão propriamente direcionados para os mais pobres que, em sua grande maioria, sequer concluíram o ensino fundamental e, na idade em que deveriam estar cursando o ensino superior, já estão participando do mercado de trabalho, muitas vezes em ocupações marcadas pela informalidade.
"As cotas vêm possibilitar o acesso àqueles que atingiram um dado grau de educação formal, promovendo a ampliação das oportunidades para esse grupo social. A cota tem o objetivo de abrir o teto social que hoje impede uma maior progressão social do jovem negro, visando alçá-lo a uma condição de ascensão social. Essa política tem impactos na composição de um novo perfil da elite brasileira, que passará a ser marcada por uma maior diversidade e pluralidade. Nesse sentido, ela ajuda a promover maior eqüidade racial, desnaturalizando o preconceito e valorizando a presença negra nos diversos espaços e posições sociais", continua o autor.
A pobreza, explica, deve ser enfrentada com um conjunto amplo de políticas universalistas, tendo como pano de fundo o crescimento econômico e a distribuição mais equânime da riqueza. Racismo, preconceito e discriminação, por sua vez, devem ser enfrentados com outro conjunto de políticas e ações. "Conjunto esse que, infelizmente, ainda está por se consolidar", comenta.
O racismo institucional
O racismo institucional e seus desdobramentos explicam, em larga medida, as diferenças de acesso entre grupos brancos e negros a determinadas políticas e recursos, bem como as dificuldades de se reconhecer a necessidade de consolidar políticas públicas específicas de combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação racial.
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