Cleidiana Ramos
Samuel Vida
Laroyê! As transformações contemporâneas que redesenham o mundo colocam o Direito Moderno numa encruzilhada. A reconstrução identitária dos povos e comunidades tradicionais impõe nova agenda protetiva e desafia a teoria jurídica formulada na modernidade, evidenciando a obsolescência dos aparatos normativos clássicos para a efetivação dos Direitos Humanos, num contexto de efetiva multiculturalidade.
Nas Constituições recentes, verifica-se uma crescente inclusão de dimensões outrora ignoradas. Organismos internacionais apresentam recomendações e normas para o atendimento destas novas demandas. O Direito ocidental moderno constituiu-se em torno das referências civilizatórias européias, expressando, sustentando e legitimando as formas culturais, ideológicas, políticas e econômicas do Velho Mundo. Naturalizou e institucionalizou a inferioridade civilizatória dos outros povos, instrumentalizou a dominação e facilitou a montagem das engrenagens perpetuadoras das desigualdades.
Serviu aos interesses da acumulação capitalista desenfreada, beneficiadora das elites eurodescendentes, e deslegitimou-se como referência para a regulação social em sociedades com diversidade cultural. Os conceitos e as normas jurídicas relacionadas ao Direito Autoral e à Propriedade Intelectual revelam os limites contemporâneos da juridicidade monocultural, herdada da modernidade. O paradigma jurídico liberal-individualista-
A legislação brasileira sobre o tema – Lei 9610/98 – é um bom exemplo de tais limites. Ao tratar dos Direitos do Autor e demais Direitos Conexos, não inclui a tutela dos conhecimentos e produções culturais dos povos e comunidades tradicionais, frustrando os avanços conquistados na Constituição Federal de 1988, que delineou as diretrizes do reconhecimento e afirmação da natureza multicultural da sociedade brasileira, especialmente nos artigos 215 e 216.
Tal omissão oportuniza a continuidade da pilhagem do etnoconhecimento e da etnocultura. A produção de sofisticados conhecimentos, artefatos e expressões artístico-culturais pelas comunidades de matrizes africanas enfrenta sistemático processo de "pirataria cultural", representada por expropriações, falsas representações, degradações e profanações, praticadas à luz do dia pelos "novos corsários": artistas-empresários que apropriam-se indevidamente de músicas, símbolos e outras expressões tradicionais, assim como das vantagens econômicas geradas pela comercialização. A persistência da falta de tutela à Propriedade Cultural e Intelectual dos Povos e Comunidades Tradicionais ameaça a integridade moral e material da produção civilizatória de matriz africana, bem como sua continuidade.
Samuel Vida, advogado, professor de Direito da Ufba e coordenador do Programa Direito e Relações Raciais da Ufba
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