segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Biografia descortina uma época


O livro Domingos Sodré, um sacerdote africano, do historiador baiano João José Reis, tem tudo para repetir o sucesso de outros trabalhos do autor como Rebelião escrava no Brasil. A nova obra de Reis traz à tona a biografia de um liberto de origem africana que viveu na Bahia do século XIX.

O personagem escolhido é realmente fascinante: escravizado, Domingos Sodré conseguiu ascender socialmente após obter a alforria. De escravo, tornou-se, então, senhor deles.

O curioso é que foi também chefe de junta de alforria e especialista em práticas mágicas, que é a face que ganha maior relevância no livro. Com a casa devassada pela polícia, Domingos Sodré acabou preso em 1862 num contexto em que a prática da religiosidade de origem africana era entendida por autoridades policiais e pela imprensa local como um entrave ao processo civilizatório da Bahia.

As práticas do que talvez hoje possamos chamar de candomblé eram tratadas como feitiçaria e costumavam ser avaliadas por policiais e jornais como O Alabama na esfera da exploração de ignorância de um povo. Assim, sacerdotes e clientelas eram colocados num mesmo nível de comportamento duvidoso: os primeiros como charlatães e os segundos como desprovidos de inteligência.

Repressão - O interessante neste novo livro de João Reis é a sua capacidade de trazer à tona informações não só sobre o contexto em que Domingos Sodré se movimentava, mas também sobre esta religiosidade de origem de alguns dos povos africanos que vieram para a Bahia.

Também já fica patente neste período a máquina da repressão policial para sufocá-la. Ou seja: o candomblé, palavra que já era usada no período para definir estas práticas, era tratado como caso de polícia.

Esta condição se arrastou até os últimos 30 anos do século XX, pois só em 1976, o então governador Roberto Santos assinou o decreto acabando com a exigência de se retirar uma autorização na Delegacia de Jogos e Costumes para serem realizados os ritos de candomblé.

O primeiro capítulo do livro traz a descrição de como funcionava o aparato policial na época e as ações repressivas chefiadas pelo chefe de polícia João Antônio de Araújo Freitas Henriques (1822-1903) que é o mandante da prisão de Domingos Sodré, em 1862.

Embora o personagem central do livro seja Domingos Sodré, o historiador consegue traçar o panorama do nada fácil mundo dos escravos africanos, difícil mesmo para os que conseguiam ganhar a liberdade. Ser africano tornou-se insuportável a partir da revolta dos malês em 1835, um levante que provocou o pânico nas elites locais.

"Nos dias seguintes à derrota, a comunidade africana de Salvador foi submetida a uma repressão brutal protagonizada pelas forças policiais e por cidadãos armados. A violência foi equivalente ao medo que tomara conta dos moradores, por pensarem que escravos e libertos africano pudessem tentar, na seqüência, um novo levante", narra Reis.

Cobrança de taxas astronômicas para comercialização de produtos, confisco de mercadorias e várias outras medidas dificultavam a sobrevivência de africanos que insistiam em permanecer na Bahia após a revolta. Para os que não foram deportados, diante das duras condições impostas para ficar, o remédio era juntar dinheiro para retornar à África, trajetória que deu origem aos grupos dos chamados retornados, cujos descendentes vivem hoje em comunidades "brasileiras" principalmente na Nigéria e na República do Benim.

CONTEXTO - As informações do livro são bastante documentadas - uma marca característica dos trabalhos de Reis -, mas distribuídas de uma forma leve que tornam a leitura prazerosa e dinâmica. Para construir o seu relato, o historiador recorreu a registros paroquiais, testamentos, inventários, inquéritos, cartas de alforria, jornais, além da troca de correspondência da autoridades policiais.

Como em Rebelião escrava no Brasil, que se tornou um clássico da historiografia brasileira, a nova obra de José Reis, consegue fazer o leitor conhecer não apenas Domingos Sodré, mas todo o contexto em que o personagem transita.

A Salvador do século XIX ganha forma, cores e as ilustrações e fotografias incluídas nos livros ajudam numa melhor compreensão do universo abordado na obra. É mais fácil compreender o modo de vida dos libertos e os mecanismos que colocava estratos diferenciados mesmo em meio à escravidão. São canais de ascensão e negociação que eram possíveis mesmo numa estrutura de poder aparentemente rígida.

Por meio do livro, ficamos conhecendo melhor as nuances do sistema escravista com suas combinações de violência, mas também de apadrinhamento e alianças. Ser crioulo (nascido no Brasil) ou africano poderia significar tratamento diferenciado em determinados contextos. No ambiente retratado por Reis os primeiros levam uma ligeira vantagem.

Fiel ao seu estilo, o autor optou por uma linguagem leve que torna a complexidade do seu estudo mais próxima do público que não tem tanta familiaridade com os trabalhos acadêmicos. É uma virtude para alguém que detém o currículo de João José Reis: doutor em História, pesquisador renomado e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), autor, além da Rebelião escrava no Brasil, de A morte é uma festa, (ganhador do Prêmio Jabuti de 1992) e Negociação e conflito (1989) escrito em conjunto com Eduardo Silva.

Finalmente, Domingos Sodré, um sacerdote africano é uma leitura para estudantes, pesquisadores, mas também para os que estão distantes da academia, mas têm a curiosidade de conhecer os impactos da escravidão além do que se costuma aprender na escola.


Cleidiana Ramos | Jornalista de
A TARDE e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós AfroCeao-Ufba)

Publicado no A Tarde em 11/10/2008

Um comentário:

scbranco disse...

Como todo trabalho do João Reis, esse livro vem somar com sua obra que é muito relevante para historiografia baiana e brasileira. Ainda náo tive a oportunidade de comprar e ler mais essa riqueza que ele nos dá.
Gostaria de contatar com João ele é um amigo que perdi contato. Se alguem souber por favor peça para contatar-me.
Silvia Castelo Branco
scbranco@yahoo.com