Ildásio Tavares
Antigamente, era a polícia, invadiam os pejis, profanavam os orixás, arrebentavam tudo, tudo destruíam em nome da lei, lei que acobertava os desmandos do poder mas queria exterminar a religião de um povo oprimido. Será que alguém, calmamente sentado em frente a seu televisor pode imaginar ser arrancado de sua cadeira e, impotente, ver toda sua família desbaratada, acorrentada, vendida, vilipendiada?
Será que alguém pode imaginar a travessia do Atlântico, num porão infecto, arrumado aos magotes, como carne para o açougue? Os holandeses de Pernambuco traziam 500 escravos num iate, num tráfico de trocas injustas. Uma partida de fumo rendia mais de cem escravos que eram convertidos em várias partidas de fumo que eram trocadas por centenas de escravos. Em três ou quatro viagens o traficante podia comprar terras, se estabelecer. Melhor que cavar ouro.
Os remanescentes deste tráfico tiveram, na diáspora, seus mecanismos de sobrevivência e neste processo a cultura é fundamental – a religião um esteio. Uma super-raça se formaria. Em torno de seus sagrados orixás. O Ilê Axé Opô Afonjá vai fazer cem anos em 2010. Cem anos que Eugênia Ana dos Santos plantou o axé de Afonjá no São Gonçalo, num gesto de majestade que ecoaria em grandeza.
Verdadeira estadista, Mãe Aninha governou o axé com hábil mão política, tendo sido seu principal artífice. Por fortuna, logo ao se apossar dos 155mil m2 do Axé, descobriu uma fonte copiosa e em torno dela fez a casa de Yemanjá, assentando sua Yemanjá da nação de Grunci. Em seguida procedeu aos trâmites do Axé. O Ilê Axé Opô Afonjá é uma réplica do Reino de Oyó, em 1839 destruído pelos árabes. Ela, era a suprema sacerdotisa, a Iya Nassô. O Balé Xangô, era Theodoro Pimentel, pai de Mãezinha, futura Iyalorixá da casa. O Xangô assentado respondia pelo santo. Quando surgiu disputa com o Balé Xangô, Mãe Aninha criou o corpo dos doze obás de Xangô, ampliado para 36 por Mãe Senhora, outra estadista como Mãe Stella...
A fina flor da inteligência, da arte, da literatura baiana têm pertencido a esta casa. Jorge Amado. Carybé. Genaro de Caevalho, Vivaldo Costa Lima, Pierre Verger, Vasconcellos Maia, Dorival Caymmi, Dmeval Chaves, Gilberto Gil, Camafeu de Oxosse, Muniz Sodré, são alguns dos obás que dignificam e dignificaram a casa.
Ouço dizer com indignação que vândalos inescrupulosos invadiram e depredaram a casa de Oxalá na calada da noite. Um absurdo. A casa de Oxalá é um dos poucos exemplos que conheço de um compound africano na Bahia, morada coletiva e santuário coletivo de Oxalá, o orixá supremo e das aiabás. Crime, profanação, sacrilégio, a polícia tem que tomar providências urgentes. Imaginem se invadissem a Igreja do Bonfim. Seria uma celeuma nacional. Mas invadir um templo negro arrisca-se ao pouco caso. Coisa de preto. Pouco caso que não pode existir na Bahia, Sr. Governador. O senhor é judeu. Sabe que, quando começam perseguições étnicas como esta a coisa pode virar e, geralmente, os judeus são as primeiras vítimas. É preciso acabar com essa Inquisição contra a raça negra. Com esses Progroms.
3 comentários:
Este texto do Ildásio Tavares, é sem dúvidas uma suma de uma refinada inteligência afro-baiana.
Sempre fui fã dele, adoro ver suas palestras e adentrar suas sarcalidades e ironias prolixas, pois seu senso de humor é grande, parece até ser filho de Xangô...
Fala da memória do Axé Opo Afonjá, é sempre uma possibilidade de adentrar na energia brilhante destas mulheres que por ali passaram, sobre tudo a Mãe Aninha, que é o maior exemplo do poder feminino como líder negra na história do negro e do povo de Orixá.
Considero o ato de invasão e profanação da casa de Oxalá, uma pérola branca de nossa sociedade.
Absurda mesmo. Fico pensando como nós povo de terreiro podemos nos defender de coisas também como estas, pois também temos que analisar o avanço do crac nas periferias e todo o transtorno mental que ele causa nos seus usuários, que na maioria das vezes até morrem por causa a droga.
Talvez, sim, talvez não... hipóteses são muitas para este ato, mas lembro que o Afonjá está no meio da favela praticamente, é o coração de São Gonçalo, é a casa da esperança daquela região, que assim como Peixinhos, o bairro que moro, sofre coisas deste tipo o tempo todo.
A função social do Afonjá naquela região, é fundamental, e este caso pode ser uma forma de revigorar seus trabalhos na comunidade que está definitivamente plantado.
Rogar às autoridades é fundamental. E estas "autoridades" também devem mostrar ação efetiva, porque não se deve bambear perante um crime contra a religião como este.
Acho que o Babá Nlá, Orixalá, quer nos dar um recado. Precisamos ver o Ifá, escutar o que ele quer fazer com isso tudo...
Acho que poderemos ter neste caso uma fonte de estudos que transcende a celeuma do racismo e perseguição religiosa, nele podem estar chaves para desvendar outros entraves que implicam em na nossa sociedade negra...
Parabéns Ildásio, te adoro cara, você é Bará!
Nunca esqueço sua fala no Afonjá, em virtude do Alaiandê Xirê... Anos de 2004, acho... Vc me desvendou o cântico de Oxóssi.
Foi lindo. Ainda tocou atabaque e tirou onda!!
Bariká Oré Isin Wá!
Alexandre L'Omi L'Odò.
Ps: Colocarei este texto em meu blog, posso?
Pode postar, sim! Axé!
O texto "Assalto de Orixás" de Ildásio Tavares nos remete a uma reflexão profunda acerca do que estamos construindo com nossas lutas em nome do respeito a pluralidade e igualdade racial. Se de um lado parte da sociedade ainda nos vê como herdeiros da ignorância e das crendices dos pretos africanos, o que efetivamente estamos fazendo para mudar esse olhar?
Quando Ildásio fala de um assalto a Igreja do Bonfim e da mobilização que isso provocaria na sociedade, não podemos esquecer que no início do cristianismo se fazia fogueira de cristãos.
O que possibilitou a mudança dos rumos foi a unicidade, a organização, a institucionalização, a criação de um Canon universal, sendo este distinto para a igreja em si e um outro para o clero.
O Estado soube a quem se dirigir como representante legítimo do grupo eclesiástico desde o ano 335, quando do reconhecimento do cristianismo como religião oficial do império romano.
Assim como no início do cristianismo houve uma grande divisão entre os seguidores do apóstolo Paulo, de Ário e Nestório, o que resultou em vários cismas no catolicismo, nós da Religião Afro vivenciamos uma luta narcísica acirrada pelo poder.
Prova disso foi a grande confusão gerada na II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial - CONAPIR, em junho de 2009 em Brasília, quando foi proposta a criação de um Fórum Nacional de Religiosidade Afro. Por pouco não saiu morte.
O bom senso das velhas senhoras presentes não foi suficiente para aplacar o furor da disputa por espaço e poder.
A agressão ao espaço sagrado de Osalá, do Àsè Opó Afonjà, foi uma agressão a todos nós, mas quantos gritaram?
Quantas casas de Salvador e do restante do Brasil fizeram algum tipo de manifestação publica em desagravo?
Fosse uma igreja católica ou evangélica no outro dia teria havido um mundo de manifestações ecoando por todo Brasil.
Onde está o nosso povo, a unidade do povo do Àsè?
Reflitamos: O governador da Bahia bem como todos os judeus do mundo ficaram escolados depois do holocausto. Qualquer tipo de ameaça é de imediato denunciada em todo mundo. Mas nós "nigritinhos e nigritinhas" filhos da mama África precisamos com urgência da criação de um senso crítico, social e político participativo.
Lendo A busca da África no candomblé - Tradição e poder no Brasil de Stafânia Capone, editora Pallas, vi o destaque para encontros e desencontros dos nossos antepassados, os grandes terreiros surgiram de cisões que ainda hoje resistem.
A falta de senso crítico comum não nos permite enxergar os riscos da desunião, da falta de representatividade institucional agregadora das diversas nações.
O ideal seria que tivéssemos um país onde o exercício pleno da Democracia permitisse o respeito a cada grupo sócio-cultural independente do número de participantes ou origem étnica.
Mas enquanto isso não vem é preciso imitar a inteligência dos evangélicos neo-petencostais - se odeiam, se matam mas conseguem se juntar na marcha para Jesus e assim dar uma senhora manifestação de força e poder político social para as autoridades e a sociedade em geral.
Que as autoridades possuem sua parcela de culpa e de responsabilidade por atos como esse praticado por bandidos no Opó Afonjá isso é bem verdade, mas também nos falta, enquanto povo de Àsè, o corporativismo, o companheirismo, a solidariedade e o respeito aos nossos irmãos.
A partir do ano 300, foram quase setecentos anos para que o cristianismo solidificasse suas bases organizacionais.
Temos apenas 121 anos de abolição da escravatura e bem pouco tempo de prática aberta da nossa religião.
Temos um longo e tortuoso caminho pela frente.
Que Avié Vodun nos dê força, coragem e unicidade para chegarmos lá.
Vodunsi Re Rohsovi
Dr. Alberto Jorge Silva
Coordenador Regional da CARMAA e CEN
Coordenação Amazônica da Religião de Matriz Africana e Ameríndia
Coletivo de Entidades Negras - Região Amazônica
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