segunda-feira, 24 de agosto de 2009

ENTREVISTA – JOSÉ JORGE DE CARVALHO

Exclusão racial no Brasil é uma das mais escandalosas do planeta, diagnostica professor da UnB

“Um dos efeitos mais danosos causados pela exclusão é que a nossa grade acadêmica está ficando esclerosada e carente de debates. E não existe renovação sem enfrentamento de posições, para os dois lados crescerem no confronto”, coloca o acadêmico.

Vera Rotta – Carta Maior

BRASÍLIA - A multirracialidade da população brasileira definitivamente não se reproduz nas instituições de ensino brasileiras. No livro “Inclusão Étnica e Racial”, o professor José Jorge de Carvalho, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), faz um panorama completo da exclusão racial no Brasil e levanta também uma discussão aprofundada da questão das ações afirmativas para negros no país. “A Universidade brasileira está esclerosada e carente de debates”, resume.

Em entrevista a CARTA MAIOR, Carvalho - que tem pós-doutorado em Antropologia pela Universidade da Flórida (Estados Unidos), é doutor em Antropologia Social e mestre em Etnomusicologia pela Queen’s University de Belfast (Irlanda do Norte) - qualificou a Universidade brasileira como uma das mais excludentes do mundo. Propostas de ações afirmativas devem ser colocadas em prática, segundo ele, o mais rápido possível. Leia abaixo trechos da entrevista com José Jorge de Carvalho.

“A Universidade brasileira é eurocêntrica”
“Um dos efeitos mais danosos causados pela exclusão é que a nossa grade acadêmica está ficando esclerosada e carente de debates. E não existe renovação sem enfrentamento de posições, para os dois lados crescerem no confronto. A Universidade está muito corporativa. É uma rede muito fechada que se auto-reproduz e cai na mesmice. Funciona mais ou menos assim: o colega fez uma coisa que não é original, mas como ele é meu colega há muitos anos e é parente de um outro colega da outra universidade, eu não vou brigar com ninguém e aí fica aquela coisa fechada. Ao colocar a presença de professores negros, a primeira coisa que você percebe é que os currículos são eurocêntricos demais. Isso é escandaloso. No departamento de música, tem 50 a 60 professores - como na UFMG – e é só musica clássica, européia, barroco. E a gente com essa variedade toda de ritmos. Na História da Arte é tudo sobre arte européia. Literatura é só dos países europeus. Em todos os departamentos, psicologia, filosofia. Para onde você olhar, a grade está esclerosada, do ponto de vista da diversidade interna”.

“Em São Paulo a porcentagem de negros é a pior de todas”
“Resolvi fazer a contagem de professores quando descobri que em 20 anos de doutorado na antropologia não havia entrado nenhum aluno negro. Comecei a olhar para os lados e vi que não era só na antropologia, quase não havia aluno negro na pós-graduação como em nenhum outro curso. Se o número de estudantes negro na graduação já é baixo, na pós é muito mais. A pergunta seguinte foi: e entre os professores? Então fizemos uma pesquisa na UnB, que eu chamo de senso de identificação. Várias vezes fizemos a contagem e encontramos 15 professores negros em 1500, [ou seja] 1%. O passo seguinte foi: e nos outros lugares? Em São Paulo, [a porcentagem de negros] é a pior de todas. Eu fiz pesquisa em doze universidades e quando juntei as seis que são na verdade as mais importantes do país, as que têm mais poder, as que são mais poderosas - USP, Unicamp, UFRJ, UFMG, UFRGS e UnB – cheguei à cifra de 0,4% de professores negros. E o poder vem dessa universidades: o ex-reitor da Unicamp, Paulo Renato de Souza, foi ministro da Educação por oito anos; o Cristovam Buarque, da UnB, foi ministro da Educação, o Fernando Haddad, professor da USP, é ministro da Educação; o Carlos Lessa, ex-reitor da UFRJ, vai para o BNDES, ou seja, o poder vem dessas universidades. Essas universidades controlam não só uma grande parte do capital, como também o poder político, as decisões do e sobre o país. Numa população de 45% de negros, isso não tem paralelo no mundo.

“O sistema brasileiro de exclusão racial é um dos mais escandalosos do planeta”
“Se compararmos o Brasil com os outros países que tiveram ação afirmativa, como Estados Unidos, África do Sul, Índia, Malásia, veremos que neles as ações afirmativas foram transversais. Não foi só na graduação, foi na pós também, foi para professores, foi para pesquisadores, além de depois em outros cargos do funcionalismo. Nós ainda estamos apenas discutindo isso só na graduação. Mas isso não resolve. Pode demorar décadas para isso de fato fazer efeito na cabeça da elite. Você entra na Capes, ela é branca, CNPq é branco, Finep, os institutos de pesquisa, Fundação Getúlio Vargas, para onde você olhar a elite é a mesma, saiu do mesmo lugar da UFRJ, da USP da UFMG, da UnB... É o mesmo grupo. O atraso é muito grande. Se deixarmos com o está não teremos nenhuma perspectiva. Vamos virar um verdadeiro motivo de escândalo no planeta. As universidades, no mundo inteiro estão ficando mais multirraciais já do que o Brasil”.

“O racismo nos concursos é muito alto”
“Aqui o problema é crônico. Ainda nos dias do apartheid, as universidades da África do Sul tinham mais professores negros do que as nossas têm agora. Ou seja, a gente acha que o apartheid é esse horror - e foi realmente -, mas a nossa situação é mais excludente. O nosso esquema é pior e sem perspectiva. Não tem saída, a não ser através de cotas. Por exemplo, existem 20 doutores negros na cidade do Rio de Janeiro que não estão dando aulas em federais, estão nas particulares. Na verdade é um sistema muito perverso porque as pessoas se matam para fazer um doutorado em uma universidade publica e depois não conseguem entrar nela porque o racismo dos concursos é muito alto. Um amigo meu do Rio de Janeiro que fez o doutorado conta que quando terminou a defesa, acabou a argüição e todos os professores levantaram para cumprimentar o doutor, um dos membros da banca da Universidade onde ele terminou o doutorado se aproximou e disse: “tudo bem, você tirou seu doutorado, mas aqui você não entra”. O que é isso? Na hora que ele passa no doutorado o pensamento é só seguinte: agora ele é um concorrente. Ele claramente sente isso como um trauma, uma dor, até hoje. Principalmente porque não pôde denunciar. Se você denúncia não tem eco. É uma comunidade branca, hostil e que não vai se sensibilizar não vai se solidarizar, não vai comprar uma briga com outro colega”.

“Inúmeros estudantes negros são reprovados na entrevista”
“Inúmeros estudantes não conseguem entrar no mestrado ou no doutorado porque são reprovados na entrevista. A famosa entrevista. Ela é feita a portas fechadas e a banca depois não diz nada porque na entrevista você dá a nota e não tem testemunha do que foi perguntado. Aí vem aquela alegação de que você não esta dentro do perfil que eles estão procurando. Tem muita coisa complicada. Muito estudante não entra porque não tem um tema de pesquisa, não tem orientadores para o que ele quer pesquisar, porque como a universidade é branca tem muitos temas que os estudantes negros querem estudar e pesquisar e não há professores para orientar. Então é um circulo vicioso”.

“A comunidade negra brasileira é que sofre as conseqüências desse sistema”
“O país é multirracial, mas ele não quer admitir que é. Ele não consegue dar conta da multirracialidade. É uma barreira muito profunda e os danos são imensos. A primeira a sofrer as conseqüências é a comunidade negra. Você não tem políticas públicas, você não tem atenção às carências da com unidade negra porque as pessoas que estão no poder não enxergam, não tem diálogo, não sabem as necessidades dessa comunidade. O segundo ponto - e talvez o mais grave - é a perpetuação do racismo. Você perpetua a discriminação porque todo o estereótipo negativo em relação ao negro é confirmado, porque você não vê profissionais negros em cargos de destaque. Existe muita reclamação de carências de profissionais negros, por exemplo, na medicina, na educação, em muitos temas. Imagina uma medicina voltada para a raça negra”.

“As cotas são fundamentais para mudar o imaginário”.
“Só as cotas não vão resolver amanhã um problema tão grande. Tem que fazer reserva de vagas para professores. Um professor negro que entrar na Universidade de São Carlos, por exemplo, vai ter dinheiro para a pesquisa e vai puxar alunos para orientar. Ele ou ela vai ser chamado para participar de vários debates públicos. E você passa a ter uma outra inserção em espaços cada vez mais importantes nas capacidades de decisão”.

“A meritocracia é uma ideologia para barrar”
“Para professor tem que fazer reserva. Nós já fizemos um cálculo: tem 20 professores com doutorado na área do Rio de Janeiro que estariam preparados para ingressar, para assumir se abrissem vagas preferenciais para professores na UFRJ, na Federal Fluminense, na Federal Rural. Se são 20 no Rio, pode ter 40 em São Paulo, penso que até mais. É preciso fazer esse cálculo. No mínimo, uns 50 em São Paulo. Então já são 70. Mais Minas, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina e Brasília, no mínimo você teria 110 doutores. Se abrissem vagas para assistentes também esse número aumentaria. Poderíamos facilmente colocar 200 professores negros de uma só vez. Seria fantástico. Você começaria a ter uma nova geração para ensinar os alunos negros que estão entrando pelas cotas. Aí você junta os dois. O ponto importante disso é que a comunidade científica como um todo ganha. A disparidade é tão grande que você tem que começar a integrar depressa. E a meritocracia não pode ser o único critério. Nós temos outro critério que é a exclusão racial, que é o racismo mesmo. Ele não pode esperar mais. A África do Sul também não teve que esperar a meritocracia. Era tão alta a exclusão que teve que colocar os professores para fazer o impacto para mudar”.

“Com os índios, a situação é muito pior”
“Nossa situação em relação aos índios é a pior do continente. Nosso genocídio é o maior de todos. Falar da situação dos índios no Brasil é falar de algo muito doloroso. Tem professor indígena na universidade da Colômbia. No Brasil, agora estão começando a entrar alunos indígenas. Os quatro primeiros indígenas brasileiros que estão se formando em medicina na história do Brasil estão se formando em Cuba. Cuba que é muito mais pobre que o Brasil está pagando a nossa dívida com os índios. A primeira vez que na história do Brasil os índios entraram em uma universidade federal para estudar foi na UnB em 2003 quando abrimos as cotas para os índios. Ou seja, passaram vários poderosos no poder, como o Darcy Ribeiro que foi chefe da Casa Civil, e nada. Nunca houve uma abertura das universidades também para os índios. Hoje temos mil e poucos índios na graduação. E eles estão entusiasmadíssimos. A principal reivindicação agora é na área de educação, na formação de quadros. Também aí a meritocracia não pode ser o único padrão. Os indígenas têm muita formação, tem outros saberes, outra leitura do mundo que um jovem mestre branco não tem. Seria enriquecedor. Imaginem os cursos de arte, de filosofia, com esse outro olhar. Os questionamentos vão ser outros. Sem falar nas questões ambientais. Nós temos na UnB um centro de desenvolvimento sustentável. Esse curso tinha que ter professores indígenas, debatendo, questionando. Eu acho que é tão grave que a medida de cotas não é drástica. Drástica foi a realidade. Isso daí é um paliativo”.

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