segunda-feira, 6 de abril de 2009

“Não há nada para discutir aqui, se não há racismo no Brasil” - Entrevista com Donn Davis

Professor associado e diretor de Pós-Graduação do Departamento de Ciência Política da Howard University, em visita ao Brasil, participou do painel “Diálogo sobre Racismo no Judiciário”, promovido pelo Ministério da Justiça, e proferiu palestra na Faculdade de Direito da UnB. Davis coloca o enfrentamento ao racismo como ponto norteador do debate sobre igualdade racial e políticas públicas no Brasil

Por Isabel Clavelin*

Donn G. Davis é especialista e pesquisador de direito constitucional, processos legislativos e do judiciário, ideologia política, direito e sociedade afro-americanas, e democracia e direitos humanos em sociedades pós-coloniais. Sua pesquisa atual enfoca questões relativas ao impacto das políticas sociais reparatórias no período posterior ao Movimento pelos Direitos Civis e ao debate atual sobre as ações afirmativas nos EUA, numa perspectiva comparada com o Brasil, Malásia e África do Sul.

Entre 1995 e 2001, Davis foi diretor Legislativo Sênior e Conselheiro do Congressional Black Cáucus - comissão do Congresso dos Estados Unidos que atua para defender os interesses das populações afro-americanas e atuar nas campanhas legislativas pelos direitos humanos e civis. Nesse cargo, desenvolveu pesquisas e análises, redigiu propostas de leis, organizou audiências legislativas, desenvolveu e supervisionou programas de serviços para eleitores.

É autor de três monografias para o Congresso dos Estados Unidos e de cerca de 50 artigos publicados em periódicos especializados, anais de conferências acadêmicas e sob a forma de capítulos de livros. Recebeu diversos prêmios e distinções. Atualmente, dedica-se a dois livros em fase de edição: American Political Leadership, Ideology, Culture and Recent History” e “Equalizing the Global Playing Field: A Comparative Assessment of Affirmative Action in Brazil, Malaysia, South Africa and the United States”.

Donn Davis concedeu uma fascinante entrevista ao Ìrohìn, na Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) na semana passada antes de sua palestra “O Racismo no Judiciário: A Experiência dos Estados Unidos”. Esse foi o último compromisso de Davis no Brasil, cuja missão começou no dia 26 de março no painel “Diálogo sobre Racismo no Judiciário”, promovido pelo Ministério da Justiça.

Na entrevista, Donn Davis aponta questões centrais para o Brasil e a militância negra: a atuação do Estado brasileiro para o enfrentamento ao racismo e a efetivação do princípio constitucional da igualdade e a autonomia do movimento social para manter o engajamento e a crítica necessária contra o sistema que impede os direitos de cidadania da população negra. Davis ressaltou a baixa representatividade de negros e negras nos espaços de poder, particularmente no Judiciário, e o falacioso uso da igualdade como subterfúgio argumentativo para recusa das cotas e das políticas de ações afirmativas.

Mais entusiasmado do que na primeira visita ao Brasil, ocorrida em 2002, Davis constatou um avanço no debate sobre racismo e discriminação racial no país. E declarou “orgulho da embaixada dos Estados Unidos Foto: Tana Cardosopor se aproximar das organizações sociais brasileiras. Isso é algo que enche o meu coração de orgulho”.

Ìrohìn - Qual o impacto das políticas reparatórias e de ações afirmativas pós-Direitos Civis nos Estados Unidos? Como o senhor avalia o resultado dessas políticas? O presidente Obama é resultado dessas políticas?

Donn Davis - Em primeiro lugar, quero agradecer o convite para estar aqui. Estou muito grato pelo convite e satisfeito de saber do interesse do Ìrohìn e de seu ponto de vista. Estou disposto a compartilhar com seus leitores. Fico feliz em saber da existência do Ìrohìn e vou tentar acompanhar a versão on line do jornal. Fico gratificado em ver que o fato de estar aqui é o início daquilo que vejo como um movimento emergente e crescente no Brasil, que reflete o desenvolvimento de uma consciência mais intensa do que pude ver durante minha primeira visita, em 2002. Quando vim para o Brasil, pela primeira vez, percebi a necessidade de um movimento de massa que levantaria a questão do racismo e a necessidade de o Estado brasileiro levar a sério as condições de emergência dos diferentes grupos étnico-raciais do país por meio do desenvolvimento de políticas de ações afirmativas com resultados. Isso levaria a um alívio de certas condições de negação que eu havia percebido na minha primeira visita. Mas fiquei muito desencorajado naquela época, porque eu achava que o Brasil poderia fazer uso do movimento de massa, como tivemos nos Estados Unidos, e não estava fazendo.

Ìrohìn - Que diferenças o senhor percebe entre Brasil e Estados Unidos, partindo da perspectiva do combate ao racismo?

Donn Davis - Seria extremamente difícil, talvez até impossível, fazer isso aqui no Brasil por causa da mistura, digamos, de identidades nesse País, das quatro divisões principais que se tem na população. Isso deixa as pessoas com uma capacidade reduzida para descobrir uma consciência negra intensa, o que levou ao desenvolvimento do nosso movimento de massa nos Estados Unidos. Eu acho que isso tem a ver com a nossa luta dos Estados Unidos que nasceu de uma condição de segregação absoluta. Não havia qualquer possibilidade de se imaginar outra opção que não fosse a de lutar contra o sistema que a segregação estadunidense, durante toda a primeira metade do século XX e o último quatro de século XIX, fez numa construção social que beirava o absurdo. Você não podia dizer sou moreno ou sou pardo. Era um sistema que confinava os grupos populacionais. Criava condições para que não houvesse outra alternativa a não ser lutar contra o sistema. O que percebi no Brasil foi uma situação em que muitos indivíduos, pelo menos eu imaginava, tinham a oportunidade de participar de uma luta porque a condição na qual a população não-branca se encontrava era horrível. As pessoas podiam imaginar que se podia ter uma mobilização da sociedade para abandonar essa situação.

Ìrohìn - O enfrentamento do racismo nos Estados Unidos decorreu do racismo explícito pela legislação e pelas relações sociais entre negros e brancos?

Donn Davis - Os Estados Unidos não tinham essa possibilidade de fugir da segregação, você apenas podia lutar contra o racismo. Nós tivemos uma definição racial e restrições legais de raça que expressamente diziam “se tiver uma gota de sangue negro - não interessa quão branco possa ser-, você é negro”. E não havia qualquer nível ou qualquer espécie de contestação daquela condição. Então, você tinha apenas a possibilidade de lutar.

Ìrohìn - Como se dá o debate racial hoje nos Estados Unidos? A eleição do presidente Obama trouxe o tema à tona?

Donn Davis – A eleição de Obama é um encorajamento para muitos de nós. Temos muito orgulho de que um homem negro seja finalmente eleito para a presidência dos Estados Unidos. Mas não temos uma expectativa exagerada da gestão de Barack Obama. Uma das coisas que tem aparecido como resultado de nossa luta é a composição de ativistas sociais e políticos, eleitos ou que passaram a integrar a gestão do presidente Obama em cargos. Isso é bom por um lado, mas é ruim de outro lado porque uma vez que você se torna prefeito, senador ,ou tenha qualquer posto no governo sua atuação, fica muito restrita. Obama não pode agora representar os interesses dos negros. Ele é presidente dos Estados Unidos. A sua campanha à presidência, propositalmente, eliminou qualquer menção à raça. Exceto numa ocasião em que ele teve de falar sobre raça. Foi um esforço calculado não falar sobre raça, porque ele não era um elemento de sucesso no seu caminho à presidência. A política prática diz que ele estava correto. Mas como presidente dos Estados Unidos ele não pode liderar a atividade de protesto. Não pode ser porta-voz dos negros, das ações afirmativas, de reservas de oportunidade de emprego. Deve ser presidente de todos os 300 milhões de pessoas dos Estados Unidos. Conseguiu eleger 46 membros do Congresso, cada qual agora é membro do Congresso dos Estados Unidos representando os interesses de um distrito, de um grupo de líderes. Mas eles não têm a liberdade de representar toda a América negra, não têm mais essa possibilidade. Por outro lado, quando não se é eleito ou não se ocupa um cargo, a pessoa tem liberdade de fazer demandas ao Estado, de protestar, de liderar, de criticar e de fazer comentários. Em geral, se está livre para se engajar contra o sistema de uma forma ativa.

Foto: Tana CardosoÌrohìn - Como o senhor avalia a trajetória de Barack Obama?

Donn Davis - A imagem de Obama é exaltada mais do aspecto da percepção. Temos orgulho do fato de ele ocupar a presidência. Gostamos da sua mulher que é negra e adoramos suas duas filhas, que são negras. Incentivo meus alunos para que leiam os dois livros de Barack Obama. Aí eles podem ver o quanto ele parece conosco, mas ele não é um de nós. Ele é produto de uma experiência pública, uma experiência política. Sua mãe era branca da classe média estadunidense, de Kansas, do centro do País. E o pai, um queniano. A formação de Obama foi entre Havaí, Indonésia e, até um certo ponto, nos Estados Unidos. Então há um ponto aí que ele conhece a condição negra, porque é tratado como uma pessoa negra. É visto como uma pessoa negra. Mas na sua própria consciência, ele não é um homem negro de Alabama, Carolina do Sul, Texas, Geórgia ou Califórnia. A experiência dele é qualitativamente diferente.

Írohìn – De que forma os ativistas negros consideram o fato de Barack Obama ser o primeiro presidente negro dos Estados Unidos?

Donn Davis - Temos de lembrar que temos muito orgulho da sua eleição e da sua posição, mas uma distinção que tem de ser feita. Há certas coisas que não podemos esperar dele. Temos orgulho, mas ao mesmo tempo temos de não exagerar o orgulho da sua eleição. A realidade é que há certas coisas que Obama não pode fazer. Quando foi senador, ele poderia ter feito mais para a comunidade negra do que como presidente. Na condição de senador havia também limitações, mas como presidente ele não pode. É individualizar um grupo na população. Ficamos gratificados com sua eleição. Mas alguns de nós percebemos os limites das expectativas. Pode ser que um dia tenhamos de protestar contra Obama, porque ele é presidente. Mas há questões em que se precisa de liderança presidencial. Obama é um presidente progressista. Esteve a favor da escolha das mulheres do direito de decidir pelo aborto, a favor das ações afirmativas. Mantém uma visão social progressista. Esperamos que seja um líder de grande valor para a comunidade negra. Mas, independentemente de mim e de você, ele não pode fazer isso diretamente.

Ìrohìn – Uma pergunta agora no contexto da sua missão. No Brasil, a igualdade é um princípio constitucional. Entretanto, a efetivação da igualdade e o enfrentamento ao racismo se deparam com mais barreiras para a elaboração e execução de políticas públicas do que com a sociedade. Essa situação é perceptível nas três esferas de poder: Legislativo, Judiciário e Executivo. Como especialista na área, qual sua impressão sobre isso?

Donn Davis – Existem muitas garantias na Constituição brasileira, o que falta é implementação. Percebi, na fala de um juiz, um dos motivos pelos quais as garantias constitucionais não são implementadas no Brasil. Vim para essa conferência [Diálogo sobre Racismo no Judiciário”, promovido pelo Ministério da Justiça] porque fui convidado. Mas não há nada para discutir aqui, se não há racismo no Brasil. Aquela é uma pessoa que está num estado de alta negação diante da realidade empírica que conhecemos. Sei que o Judiciário tem apenas 1,7% de juízes afro-brasileiros. Uma coisa que fazemos nos Estados Unidos é que temos eleição de juízes para determinar as pessoas que vão ocupar os postos. Isso faz com que vários líderes e autoridades políticas – prefeitos, governadores, conselheiros municipais e outros -, constituam comissões de cinco pessoas de determinada localidade e três de outros lugares. O grupo analisa a qualificação antes de a pessoa ser designada para o Judiciário. A comissão faz um esforço especial para fazer designações qualificadas e que representem os grupos populacionais. Obama fez duas designações essa semana [semana passada, quando ocorreu a entrevista]: uma mulher latina e um homem asiático porque eles não eram representados no Judiciário quando as designações foram feitas. Mas não queremos ver esse processo de sacrificar a excelência de duas pessoas como essas. Já tivemos listas de pessoas com nível de excelência, mas não postuladas no nosso Judiciário superior. A mesma coisa acontece com o distrito – capital do país (Washington D.C). O presidente dos Estados Unidos faz as designações, mas antes ele conversa com as autoridades locais e a comissão local para ter certeza de que esteja nomeando pessoas extremamente dedicadas. Um dos fatores de sua decisão está baseado na necessidade de manter o nível de competência daquelas pessoas que vão fazer os julgamentos. Isso confere confiança ao sistema, porque a pessoa tem o poder de julgar quem é culpado ou inocente. É preciso lembrar que essa pessoa tem posicionamentos próprios diante de determinada situação.

Írohìn – Como o senhor, especialista da área de ciências política e jurídica, avalia o Judiciário brasileiro no que se refere à questão racial?

Donn Davis – Em minha opinião, o Judiciário brasileiro vai ter decisões mais justas quando a escolha dos juízes refletir a representatividade da população. Estou muito encorajado pelo que vi do Brasil de 2002 para hoje [2009, sua segunda visita ao país]. Fiquei extremamente gratificado por ver isso e estou muito satisfeito. Sinto-me entusiasmado, porque houve progresso. Na minha primeira visita ao Brasil, achei que os brasileiros eram absolutamente relutantes, não queriam nem conversar sobre o assunto. Hoje, vejo que o movimento de consciência negra está se desenvolvendo e as organizações se fortalecem para discutir essa questão e exigir do Estado brasileiro o reconhecimento da violência racial e a existência de discriminação. E reconhecer, acima de tudo, a necessidade de criar políticas e circunstâncias das quais o governo faça o que é necessário para avançar o atendimento daqueles segmentos da população que foram excluídos. A pessoa que diz que não existe racismo e discriminação é a mesma pessoa que está preocupada em dizer que não precisa de cota. Mas eu digo que existe uma cota desde 1850 e a cota para negros desde então era zero.

*Jornalista, mestranda em Comunicação(UnB)
Fotos: Tana Cardoso

fonte: www.irohin.org.br

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