Hoje seus restos mortais encontram-se na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Salvador. Não sabemos a data do traslado, nem os nomes dos responsáveis. Só restam as letras iniciais de seus nomes na placa de mármore que marca o local de seu sepultamento no chão da sacristia. Lê-se na inscrição: “Aqui jazem os restos mortaes do professor Manoel R. Querino *28.7.1851 +14.2.1923 Gratidão dos amigos J.M.C.E.G. L.G.C”. Segundo Vianna, “O Centro Operário celebrou exéquias públicas no 30o dia do passamento do chorado artista, cabendo-me a tarefa de dizer, no momento, sobre a sua vida e seu desejo, incumbência que também me fora deferida pelo Instituto Geográfico e Histórico [...]” (1928, p. 309). Apesar de seu prestígio e influência, morreu relativamente pobre, embora, segundo seu inventário, fosse proprietário da chácara onde faleceu e de uma casa térrea em Ondina.
Caso ainda restasse alguma dúvida, graças ao inventário também sabemos que a chácara era o lar de um indivíduo que cultivava as artes e a cultura. Consta que além de “enfeites, obras e objetos de arte, louças e vidros”, sua casa continha “onze quadros, com a frente com vidro e dentro figuras de barro representando os Passos da Sagrada Paixão” – todos esses objetos avaliados “de comum acordo” em 55$000 (cinquenta e cinco mil réis). Também haviam “vinte-e-quatro figuras de barro de tamanho regular”, avaliadas em 72$000 (setenta e dois mil réis), “um Crucificado”, avaliado em 15$000 (quinze mil réis), “uma figura de gesso”, avaliada em 16$000 (dezesseis mil réis), “onze quadros comuns”, avaliados em 22$000 (vinte e dois mil réis), “dezesseis quadros com desenho a crayon” (48$000), um violão (50$000), um “gramophone” (80$000).
Querino publicou, entre outros títulos: Artistas bahianos (em 1909); As artes na Bahia (em 1909); Bailes pastoris (em 1914); A raça africana e os seus costumes na Bahia (em 1916); A Bahia de outr’ora (em 1916) e O colono preto como factor da civilização brazileira (em 1918). Também escreveu Modelos das casas escolares adaptadas ao clima do Brasil (1883) e dois livros didáticos: Desenho linear das classes elementares e Elementos de desenho geométrico, “compreendendo noções de perspectiva linear, teoria da sombra e da luz, projeções e arquitetura” (QUERINO, 1911, p. 147-148), e publicou diversos artigos na revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (NASCIMENTO e GAMA, 2009). Lançou segundas edições revistas e ampliadas de dois livros de sua autoria — Artistas bahianos (em 1911) e A Bahia de outr’ora (em 1922). Essa última publicação, editada no ano anterior a sua morte, anuncia outros títulos em preparação: Um século de artes, na Bahia, As modinhas bahianas, Bailes pastoris — com música, e “O Dia 2 de Julho de 1823”. Apenas o último trabalho foi publicado inacabado na Revista do IGHB (Ibid., p. 81). A arte culinária na Bahia, seu estudo pioneiro sobre a cozinha baiana, foi lançado em 1928, graças aos esforços de J. Teixeira Barros (VIANNA, 1928, p. 309). O livro ilustrado Costumes africanos no Brasil, organizado em 1938 por Artur Ramos, reúne vários trabalhos de sua autoria, inclusive essa obra póstuma. Nas palavras de seu confrade e amigo Antonio Vianna, Manuel Querino “[D]edicou-se de corpo e d’alma aos estudos tradicionalistas, revivendo com uma exatidão inexcedível e irrefutável, tipos e hábitos, coisas e ideias que estavam condenados a perpetuo olvido” (VIANNA, 1928, p. 308). Igualmente, “Foi um devotado à causa democrática” (Ibid.).
Referindo-se a Cruz e Souza e Lima Barreto, Bosi observa que, “netos de escravos e filhos de forros apadrinhados, receberam educação refinada, de cunho europeu, que lhes deu esperanças de realização profissional e acatamento nos meios liberais da recém-criada República. Mas as barreiras já começavam a levantar-se: com a perda dos protetores ambos caíram em ambientes estreitos, sem horizontes” (2002, p. 186-187). Cruz e Souza teria sublimado seu ressentimento em poesias como “Dor negra” e “Emparedado” e Barreto exposto seu sentimento “nu e cru” na ficção. No romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, o protagonista é um rapaz que só descobre que é “negro” quando sai do interior e procura sucesso na cidade grande. Visto que Querino teve uma “educação refinada, de cunho europeu”, graças aos seus próprios esforços como aluno fundador da Escola de Belas Artes, e ficou sem “pistolão” (QUERINO, 1938, p. 11), pode-se dizer que o ex-jornalista, ex-líder operário e ex-vereador baiano dedicou-se à pesquisa e defesa do negro e das artes pelo mesmo motivo. Como observa Frederico Edelweiss, no prefácio à terceira edição de A Bahia de outrora: “Quantas vezes deve ter ouvido a frase feita e ainda corriqueira: ‘este negro não se enxerga’. As reivindicações a favor dos irmãos de raça haviam de trazer-lhe simpatia e desafetos; mais desafetos” (QUERINO, 1946, p. 1-2).
Do livro Travessias no Altântico Negro, de Sabrina Gledhill