terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

100 Anos da Morte de Manuel Querino

Manuel Querino faleceu a 14 de fevereiro de 1923, vítima de malária, em sua chácara em Matatu Grande, distrito de Brotas, a área onde hoje é localizada a Praça Manuel Querino, deixando Laura Pimentel Querino e apenas dois filhos: o músico e artífice Paulo Querino e Maria Anatildes Querino. Foi sepultado no cemitério Quinta dos Lázaros. Vários jornais brasileiros publicaram obituários na ocasião de sua morte. Na primeira página da edição de 15 de fevereiro de 1923, numa nota intitulada “A morte do Prof. Manoel Querino”, o Diário da Bahia informou: “O enterro do pranteado baiano realizou-se, ontem, com grande acompanhamento, recebendo sua exma. viúva e filhos inúmeros testemunhos de pesar. Disseram-lhe o último adeus à beira da sepultura os srs. Major Cosme de Farias, dr. Martinho Braga, professor Ozeas Santos e Antonio Vianna”. Segundo o obituário publicado em O Democrata no dia seguinte (transcrito na íntegra no próximo capítulo), Cosme de Farias representava o Centro Operário, Ozeas Santos, a Escola de Belas Artes, e Antonio Vianna, o “Instituto Geográfico e Histórico”. Também comparecerem “ao saimento fúnebre o dr. Intendente municipal, dr. Secretário da Agricultura e o representante do dr. secretário da Polícia e Segurança Pública” (Ibid.).

Hoje seus restos mortais encontram-se na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Salvador. Não sabemos a data do traslado, nem os nomes dos responsáveis. Só restam as letras iniciais de seus nomes na placa de mármore que marca o local de seu sepultamento no chão da sacristia. Lê-se na inscrição: “Aqui jazem os restos mortaes do professor Manoel R. Querino *28.7.1851 +14.2.1923 Gratidão dos amigos J.M.C.E.G. L.G.C”. Segundo Vianna, “O Centro Operário celebrou exéquias públicas no 30o dia do passamento do chorado artista, cabendo-me a tarefa de dizer, no momento, sobre a sua vida e seu desejo, incumbência que também me fora deferida pelo Instituto Geográfico e Histórico [...]” (1928, p. 309). Apesar de seu prestígio e influência, morreu relativamente pobre, embora, segundo seu inventário, fosse proprietário da chácara onde faleceu e de uma casa térrea em Ondina.

Caso ainda restasse alguma dúvida, graças ao inventário também sabemos que a chácara era o lar de um indivíduo que cultivava as artes e a cultura. Consta que além de “enfeites, obras e objetos de arte, louças e vidros”, sua casa continha “onze quadros, com a frente com vidro e dentro figuras de barro representando os Passos da Sagrada Paixão” – todos esses objetos avaliados “de comum acordo” em 55$000 (cinquenta e cinco mil réis). Também haviam “vinte-e-quatro figuras de barro de tamanho regular”, avaliadas em 72$000 (setenta e dois mil réis), “um Crucificado”, avaliado em 15$000 (quinze mil réis), “uma figura de gesso”, avaliada em 16$000 (dezesseis mil réis), “onze quadros comuns”, avaliados em 22$000 (vinte e dois mil réis), “dezesseis quadros com desenho a crayon” (48$000), um violão (50$000), um “gramophone” (80$000).

Querino publicou, entre outros títulos: Artistas bahianos (em 1909); As artes na Bahia (em 1909); Bailes pastoris (em 1914); A raça africana e os seus costumes na Bahia (em 1916); A Bahia de outr’ora (em 1916) e O colono preto como factor da civilização brazileira (em 1918). Também escreveu Modelos das casas escolares adaptadas ao clima do Brasil (1883) e dois livros didáticos: Desenho linear das classes elementares e Elementos de desenho geométrico, “compreendendo noções de perspectiva linear, teoria da sombra e da luz, projeções e arquitetura” (QUERINO, 1911, p. 147-148), e publicou diversos artigos na revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (NASCIMENTO e GAMA, 2009). Lançou segundas edições revistas e ampliadas de dois livros de sua autoria — Artistas bahianos (em 1911) e A Bahia de outr’ora (em 1922). Essa última publicação, editada no ano anterior a sua morte, anuncia outros títulos em preparação: Um século de artes, na Bahia, As modinhas bahianas, Bailes pastoris — com música, e “O Dia 2 de Julho de 1823”. Apenas o último trabalho foi publicado inacabado na Revista do IGHB (Ibid., p. 81). A arte culinária na Bahia, seu estudo pioneiro sobre a cozinha baiana, foi lançado em 1928, graças aos esforços de J. Teixeira Barros (VIANNA, 1928, p. 309). O livro ilustrado Costumes africanos no Brasil, organizado em 1938 por Artur Ramos, reúne vários trabalhos de sua autoria, inclusive essa obra póstuma. Nas palavras de seu confrade e amigo Antonio Vianna, Manuel Querino “[D]edicou-se de corpo e d’alma aos estudos tradicionalistas, revivendo com uma exatidão inexcedível e irrefutável, tipos e hábitos, coisas e ideias que estavam condenados a perpetuo olvido” (VIANNA, 1928, p. 308). Igualmente, “Foi um devotado à causa democrática” (Ibid.).

Referindo-se a Cruz e Souza e Lima Barreto, Bosi observa que, “netos de escravos e filhos de forros apadrinhados, receberam educação refinada, de cunho europeu, que lhes deu esperanças de realização profissional e acatamento nos meios liberais da recém-criada República. Mas as barreiras já começavam a levantar-se: com a perda dos protetores ambos caíram em ambientes estreitos, sem horizontes” (2002, p. 186-187). Cruz e Souza teria sublimado seu ressentimento em poesias como “Dor negra” e “Emparedado” e Barreto exposto seu sentimento “nu e cru” na ficção. No romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, o protagonista é um rapaz que só descobre que é “negro” quando sai do interior e procura sucesso na cidade grande. Visto que Querino teve uma “educação refinada, de cunho europeu”, graças aos seus próprios esforços como aluno fundador da Escola de Belas Artes, e ficou sem “pistolão” (QUERINO, 1938, p. 11), pode-se dizer que o ex-jornalista, ex-líder operário e ex-vereador baiano dedicou-se à pesquisa e defesa do negro e das artes pelo mesmo motivo. Como observa Frederico Edelweiss, no prefácio à terceira edição de A Bahia de outrora: “Quantas vezes deve ter ouvido a frase feita e ainda corriqueira: ‘este negro não se enxerga’. As reivindicações a favor dos irmãos de raça haviam de trazer-lhe simpatia e desafetos; mais desafetos” (QUERINO, 1946, p. 1-2).

Do livro Travessias no Altântico Negro, de Sabrina Gledhill  

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

(Re)apresentando Manuel Querino - 1851/1923: um pioneiro afro-brasileiro nos tempos do racismo científico

Quem foi Manuel Raymundo Querino? A resposta (incompleta) começaria com pintor decorador e professor de desenho geométrico e passaria por líder trabalhista, jornalista militante, abolicionista, republicano, político, funcionário público, até pesquisador dos costumes baianos de outrora, culinária, artistas e a história da Arte da Bahia, etnografia e defensor do papel do africano e seus descendentes na construção da civilização brasileira. Reunindo artigos da autoria de Jorge Calmon, Eliane Nunes, Christianne Vasconcellos, Jeferson Bacelar, Carlos Alberto Dória e Sabrina Gledhill, com prefácios de Paulo Farias e Jaime Nascimento e uma introdução de Flávio Gomes, este livro procura abordar, realçar e fazer jus a várias facetas da atuação e do pioneirismo de Querino. Faz parte de uma longa campanha para homenagear e (re)apresentar um “ilustre desconhecido” que enfrentou os preconceitos de sua época com tinta e papel.
Saiba mais: https://www.amazon.com.br/dp/B096QY43DJ/ref=cm_sw_em_r_mt_dp_ETCR3TQ7X637RJPPB294

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Gledhill se reúne com Querino e Washington

As perspectivas do livro Travessias no Atlântico Negro. Reflexões sobre Booker T. Washington e Manuel R. Querino (Salvador: EDUFBA, 2020), recém-lançado pela professora doutora Sabrina Gledhill, são alvissareiras. Lançado, há alguns meses, no formato e-book, o livro foi, depois, impresso e recebeu a chancela da editora da UFBA. Rica de informações novas e bem escrita, a obra da professora Gledhill trata de dois personagens, um brasileiro e o outro norte-americano, do final do século XIX e início do século XX, que contribuíram com estudos sobre a herança africana na cultura de seus países e que foram vítimas do apagamento perverso das contribuições que deram.



Fui agraciado com exemplar [...] e acompanhei os lançamentos online que a autora promoveu e com que nutriu a plateia de mais curiosidade para usufruir das 300 páginas da obra. Tudo, nesse livro, é valioso, inclusive a vasta bibliografia, na qual se constata que, também no caso de Manuel Querino (1851-1923), há estudos nacionais e estrangeiros sobre os dois escritores estudados.

A britânica Sabrina Gledhill é, ouso informar, mais baiana do que muitos de nós que nasceram na Bahia, isso porque, além das duas filhas brasileiras, a autora de Travessias no Atlântico Negro mergulhou fundo em nossa cultura. Ademais, nos anos em que viveu em Salvador – ora vive em Birmingham, na Inglaterra –, atuou como tradutora (contribuiu para a coleção dos livros do Prêmio Clarival do Prado Valadares, da Fundação Emílio Odebrecht) e como curadora do projetos culturais, dentre os quais a restauração do Cemitério dos Ingleses, na Ladeira da Vitória.

O professor Luis Henrique Dias Tavares (1926-2020) nutria apreço e admiração pela estudiosa que a Inglaterra emprestou à Bahia e, no meu caso, nossa aproximação foi por causa de Querino e do fotógrafo inglês Benjamin Robert Mulock (1829-1863), que viveu em Salvador e legou rica iconografia à posteridade. Ademais, Querino foi professor (no Liceu de Artes e Ofícios) de Arthur Arezio da Fonseca (1873-1940), gráfico, editor e escritor baiano que estudei e sobre quem publiquei livro a respeito.

A propósito de Querino e Arezio, em 2023, transcorre o centenário da morte do primeiro, o que coincide com a mesma celebração de Ruy Barbosa; quanto a Arezio, em 2023, comemoraremos os 150 anos da data de seu nascimento.

Oxalá festejemos!

Luis Guilherme Pontes Tavares
23 de novembro de 2020

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Travessias (edição Funmilayo) agora disponível sob demanda (print on demand)

O e-book Travessias no Atlântico Negro: reflexões sobre Booker T. Washington e Manuel R. Querino editado pela Funmilayo (2018) está disponível como livro impresso sob demanda pela Amazon. A edição impressa lançada pela Edufba em 2020 está disponível no Brasil pela amazon.com.br e a estantevirtual.com.br 


terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Jogando luz sobre a vida de Querino

Soube pela Academia.edu que minha tese, Travessias racialistas no Atlântico Negro: reflexões sobre Booker T. Washington e Manuel R. Querino, foi citada num artigo que também citou uma dissertação de mestrado sobre a biografia de Querino. Segundo esse trabalho, Querino seria "provavelmente filho de escravos"! Entretanto, de acordo com seu registro de batismo, teria sido filho do carpinteiro José Joaquim dos Santos Querino e Luzia da Rocha Pita - ambos negros livres, conforme Jorge Calmon (1980). Ora, é possível que sua mãe biológica (Maria Adalgisa segundo uma anotação encontrada na certidão de óbito) tenha sido escravizada e, por isso, entregou o menino para o casal Querino criar. Mas, como sabemos, filho de escravizado, escravizado era, portanto essa informação distorce ainda mais a história de vida dele. Se fosse filho de escravos, não teria uma carta de alforria?

CALMON, Jorge. Manuel Querino, o jornalista e político. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais, UFBa, maio 1980 (Ensaios/Pesquisas, 3).

Segue a transcrição da certidão de óbito:

Certidão do Registro Civil e óbito de Manoel Raymundo Querino

 14 de fevereiro de 1923 no distrito de Brotas

Armando Américo Cardozo, residente de Matatu levou atestado de Dr. Guilherme Pereira da Costa.

Faleceu às 5 horas de insuficiência mitral de concomitância – paludismo (malária)

Professor de Desenho Manoel Raymundo Querino, de cor preta, com setenta e um anos de idade, empregado público estadual, filho illegitimo de Maria Adalgisa, natural deste estado, residente em Matatu, casado com Dona Laura Pimentel Querino,

Sem testamento

Dois filhos Paulo Querino e Maria Anathildes Querino, maiores de idade

Seria sepultado no Cemitério da Quinta dos Lázaros

Ver obituário:

Diário de Notícias, 15 de fevereiro de 1923.